Por Conta Própria

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Capitúlo 1

Ela acordou com A primeira luz do amanhecer. Tudo ao seu redor estava quieto. Havia sons distantes; um game show na televisão, vozes altas, o barulho do trânsito. Mas, no seu casulo, não havia nada. Nenhum movimento. Nenhuma respiração. Apenas silêncio.

Ela puxou o lençol, amassando-o como uma bola junto ao corpo e pressionando-o confortavelmente no rosto. Mesmo que não houvesse ninguém por perto, ela sentia uma presença. E tinha medo. Um obscuro sentimento de temor comprimia o seu estômago e tornava a respiração difícil, forçando-a a tomar fôlego de forma curta e superficial. Ela tentou manter a respiração silenciosa. Para que a presença não soubesse que ela estava ali. Se alguém soubesse que ela estava ali, algo terrível iria acontecer. Ela não conseguiu identificar em sua mente o que seria, mas a intensa ansiedade e apreensão fizeram seu coração bater forte e rápido. Ela colocou o lençol no rosto por mais alguns minutos. Então, finalmente, o afastou e começou a se mover. Ela rastejou pelo chão, com os sentidos em alerta. O apartamento estava na penumbra. Cheiros ruins pareciam atingi-la bem diante do rosto, mas não havia nada que ela pudesse fazer contra eles.

A fome dela começou a aumentar. Ela soluçou um pouco com a dor e a urgência que isso lhe causava. Não havia nada para comer. Passos se aproximavam lá fora, pelo corredor, e ela parou e esperou. Eles não pararam na porta. Eles não entraram. Ela continuou a sua jornada, engatinhando lentamente pelo chão. Levou uma eternidade até chegar ao outro lado. Ela estava fraca e tinha que parar para descansar frequentemente. A cada ruído, a cada arrastar de sapatos ou rangido do prédio, ela parava e escutava, esperando que acabasse. Esperando a dor. Temendo o pior.

Ela usou uma caneca para pegar a água da bacia. Era fria, suja e tinha um gosto repugnante, mas isso já não importava há bastante tempo. Refrescava seus lábios sedentos. Acalmava sua garganta dolorida. Enchia seu estômago duro e vazio. Ela arquejava por ar a cada caneca cheia, sem fôlego por causa da urgência de encher o estômago, mesmo que a água não fosse saciá-la por muito tempo. Então ela se deitou e encurvou o corpo, e tinha os olhos pesados.

Uma batida forte na porta acordou Justine com um susto. Ela se sentou, suspirando surpresa. Olhou a porta do quarto por um momento, desorientada, tentando descobrir onde estava e também tentando separar o sonho da realidade. Mais uma batida, e a voz exasperada da sua mãe.

“Justine! Acorda! É hora de ir pra escola!”

“Já tô acordada”, gritou Justine em resposta, sua desorientação e o medo do seu sonho interrompido alimentavam a sua raiva. “Me deixa em paz!”

“É melhor você estar banhada e vestida em dez minutos.”

“Acho que não vai dar”, resmungou Justine baixinho. Emy sempre estava tentando apressá-la.

Ela ficou lá, deitada na cama quente e macia por alguns minutos, fechando os olhos e tentando se lembrar dos detalhes do sonho. Ela tinha este sonho, ou outros parecidos, frequentemente. Ela odiava a hora de ir dormir à noite, sabendo que poderia sonhar. Ela sonharia com isso de novo e de novo, a noite toda. Quando acordasse de manhã, o sonho ainda estaria lá, nas fronteiras da sua consciência. Justine ficaria cansada e sentiria a manhã se arrastar lentamente na escola, se esforçando para se focar nas tarefas mundanas que os professores lhe passavam. Coisas sem sentido e inúteis. Então por que ela estava tentando se lembrar dos detalhes? Para se sentir como se sentia no sonho? Se era um pesadelo que ela evitava quando era mandada para a cama todas as noites, por que o estava buscando agora? Não fazia sentido. Mas isso fazia parte dela. Parte de quem ela era, e ela não entendia isso. Ela queria se entender, entender de onde vinham todos esses sentimentos e sonhos.

Ela estava meio que cochilando, vagando para o sono novamente, começando a se aproximar das fronteiras do sonho. Imagens desconexas piscavam em sua mente, simplesmente fora do seu alcance, simplesmente além da sua capacidade de compreender e reuni-las em algo que fizesse sentido.

“Justine!”, gritou Emy, e as batidas na porta recomeçaram.

“Já disse que estou acordada!”, gritou Justine através da porta. Ela jogou o lençol e o deixou todo amassado na cama. “Já me levantei, então pode parar de me perturbar!”

“Você vai chegar atrasada à escola. E vai me fazer chegar atrasada ao trabalho!”

“Não tô nem aí!”, rosnou Justine.

“Justine!” A voz de sua mãe estava cheia de frustração e fúria mal controlada. “Saia já daí! Agora!”

Justine sorriu com uma satisfação amarga pela raiva da mãe. Era bem feito para Emy, por ela ser tão tirana. Justine chutou a pilha de roupas ao redor da cama, procurando algo para a escola. Ela fisgou uma calça jeans rasgada e frouxa. Estava razoavelmente limpa. A coordenação costumava reclamar dela por causa dos furos nos joelhos, mas Justine não se importava. Ela tirou o moletom esfarrapado e a camiseta que tinha usado para dormir. Colocou a calça e procurou uma camisa. Uma blusa amassada e de mangas compridas seria o suficiente. Tinha um pouco de molho de tomate respingado na frente, mas sairia se ela não se importasse em esfregar com um pano. Justine deixou a blusa por fora da calça e pegou o seu gorro favorito no cabide atrás da porta. De crochê, com uma viseira que encobria o seu rosto e fazia ela parecer um vilão diretamente de um mistério do Sherlock Holmes. Ela o colocou na cabeça. Depois saiu do quarto.

Emy saiu da cozinha e olhou para Justine, quando a ouviu descer as escadas.

“Justine”, disse ela com uma voz pesada, cheia de desaprovação. “Você não pode ir para a escola desse jeito.”

“Qual é o problema?”, desafiou Justine. “Eu vou limpar a mancha. Ninguém se importa em como eu me visto.”

“Você deveria se importar em como se veste. É só que… parece que você está dormindo com essa roupa há uma semana. As pessoas vão pensar que não consigo cuidar de você direito.”

“Bem, você não consegue”, frisou Justine.

“Você não tomou banho.”

“Não. Estou atrasada, não tenho tempo.” 

“Quando foi a última vez que você tomou banho?”, insistiu Emy.

“Não sei. Faz alguns dias.” Justine deu de ombros.

“As crianças na escola vão reclamar que você está fedendo. Você vai ficar com uma péssima reputação. Você não vai querer que todos pensem que você cheira mal. Ninguém vai querer ficar perto de você.”

“Por mim, tudo bem”, disse Justine secamente. Ela não precisava de ninguém. Eles podiam simplesmente manter distância. 

Ela empurrou a mãe ao passar por ela e abriu a geladeira, procurando algo para comer antes da escola.

“Sente-se e tome um bom café da manhã”, disse Emy com firmeza. “Você quer cereais? Ovos? Torradas?”

Justine saiu da geladeira com um pedaço de pizza e uma garrafa de suco.

“Não tenho tempo para me sentar”, disse ela, “e é melhor você ir pro trabalho”, disse olhando para o relógio, “ou vai chegar atrasada.”

Emy olhou o relógio, sabendo muito bem que estava ficando tarde, e olhou de volta para a filha.

“Você vai direto para a escola?”, indagou ela.

“Vou”, disse Justine, bebendo o suco diretamente na boca da garrafa. Emy odiava isso. Justine observou a mãe fazendo cara feia. “Vou agora mesmo.”

“Não quero receber uma ligação dizendo que você chegou atrasada ou faltou. Penteie o seu cabelo antes de ir”, orientou Emy, aproximando-se lentamente da porta e pegando a sua pasta em cima da mesa.

Justine virou a cabeça, ignorando as instruções, e deu uma grande mordida na pizza.

“Te amo”, declarou Emy, e saiu em disparada pela porta.

Pelo menos ela não tinha tentado dar um beijo em Justine desta vez. Justine se inclinou por cima do balcão, comendo a pizza. Ela não tinha pressa nenhuma em ir para a escola. Observou Emy sair com o carro pela entrada da garagem e tomar o seu rumo. Justine comeu a pizza e bebeu o suco vagarosamente. Ela colocou na mesa o recipiente do suco tomado pela metade e o deixou lá.

Justine foi ao banheiro e se olhou no espelho. Ela ficava feliz em não se parecer com a mãe. Emy tinha cabelo loiro escuro, se vestia bem e era bonita, num visual bem chique. Emy gostava de ter uma boa aparência. Ela não gostava que cada vez mais rugas e linhas de expressão estivessem aparecendo no seu rosto, e colocava a culpa disso em Justine. Ela nunca teve rugas antes de Justine. Ou um fio de cabelo branco. Agora ela tinha, em geral, um aspecto cansado, e, às vezes, não tinha nem mesmo energia para brigar com Justine.

Justine, por outro lado, tinha cabelo castanho escuro, longo e com mechas volumosas. Seus olhos eram azuis, mas era um azul profundo e brilhante. Não eram como os olhos azuis pálidos e aguados de Emy. Ela tinha as mãos e os pés grandes, quase masculinos, e suas longas pernas esguias já a colocavam alguns centímetros acima da altura de Emy. Justine imaginava que tinha puxado as características físicas do pai, quem quer que ele fosse. Ou talvez houvesse outra mãe por aí, uma que realmente se parecesse com ela. Uma mãe que Emy mantinha em segredo.

O cabelo de Justine estava com uma longa trança, que ela usava para dormir; esta era a única forma que ela conseguia controlar o estresse do dia. Certamente era bem melhor que ter que passar shampoo, condicionador, pentear e secar o cabelo todos os dias. Mas Justine não tinha tomado nenhum cuidado especial ao fazer a trança, e inúmeros cachos tinham escapado e estavam pendurados desordenadamente na frente do seu rosto. Justine tirou o elástico da ponta da trança e começou a soltar o cabelo, desfazendo a trança e passando os dedos ao longo do seu comprimento, para posicioná-lo na frente do rosto e nas costas. Está bom. Ela não se preocupou em penteá-lo como Emy tinha sugerido. Ela esfregou o molho de espaguete que estava na camisa e conseguiu tirar grande parte, deixando apenas uma leve mancha alaranjada atrás. Justine jogou um pouco de água no rosto, passou desodorante nas axilas, e saiu da casa. 

Ela pegou o seu skate longboard na porta da frente. Depois de descer os degraus da frente da casa, colocou o skate no chão, subiu nele e se transformou. Com o vento fazendo os seus cabelos voarem atrás dela, Justine sentiu os sentimentos negativos desaparecerem. Ela estava livre. Ela não era mais Justine, a filha de Emy. Ela não se sentia mais presa à terra. Era como se o vento soprando enchesse Justine como um balão, levantando-a, fazendo-a voar pelos céus acima da cidade. Ela soltava a respiração lentamente, saboreando os breves momentos de liberdade.

* * *

O tempo que ela levou para chegar à escola não foi suficiente. Justine desejava ter mais algumas horas só para andar de skate, deixando que o vento a preenchesse e dando aos seus músculos aquecidos tempo para se soltar e relaxar. Andar de skate sempre tinha sido uma válvula de escape. Andar de skate era uma das suas únicas e verdadeiras alegrias. Ela continuou em cima do skate quando saiu da calçada da rua para entrar na calçada da escola. O Sr. Berkoff, o zelador da escola, estava metodicamente limpando o lixo do chão, e gritou para ela.

“Desça do skate!”, gritou ele. “Você sabe que não é permitido andar de skate na escola!”

“Não estou fazendo mal a ninguém”, rosnou Justine. Mas ela desceu do skate e o pegou com a mão. “Não sei por que não é permitido.”

“Você poderia atropelar alguém”, disse Berkoff, começando a contar as possibilidades com os dedos. “Você poderia danificar a propriedade da escola. Isso atrapalha os alunos que já estão em aula… diferentemente de você, que parece que não lembra a que horas o sinal toca.”

“Talvez eu não tenha aula no primeiro período”, disse Justine, com um sorriso. “Talvez eu tenha tempo livre.”

“Você não tem tempo livre”, afirmou Berkoff.

Não que ele fizesse parte da coordenação. Não que ele soubesse quais eram as aulas dela. Ele só estava chutando. Tentando parecer inteligente, quando, na verdade, não era. Tudo que ele sabia fazer era coletar o lixo. Justine lhe deu um sorriso debochado com um ar de superioridade, e entrou na escola. Quando estava dentro da escola, pensou em colocar o skate novamente no chão e ir em cima dele até o armário. Mas se ela fosse pega – e as chances eram de que ela realmente seria –, as consequências seriam severas. Ela não queria ficar detida de castigo depois das aulas. Ela não queria passar ali mais do que o tempo necessário.

Quando Justine chegou ao armário, guardou o skate e pegou o calhamaço de livros que precisaria para as aulas da manhã. E pegou o celular para olhar as horas. Não estava tão atrasada, só dez minutos depois do sinal do primeiro período. Ela ainda assistiria grande parte da aula.

“Srta. Bywater”, disse uma voz desaprovadora, “você está bem atrasada.”

Justine se virou e viu o vice-diretor. O Sr. Johnson era alto e magro como um espantalho. Ele parecia um pouco amarrotado, como se também estivesse atrasado e tivesse precisado correr para chegar ao escritório a tempo. Seus cabelos finos e os óculos com armação em arame faziam-no parecer mais velho do que provavelmente era. Ele passou a mão na testa para enxugar o suor que escorria. Justine lhe deu um sorriso sem graça.

“Desculpe, Sr. Johnson”, ela pediu desculpas com uma voz que esperava soar sincera, “Acho que não ouvi o despertador e continuei dormindo, depois de ter ficado acordada até tarde limpando a casa ontem à noite, e minha mãe não estava lá para me acordar. Cheguei aqui o mais rápido que pude.”

“Não quero ouvir desculpas”, disse o Sr. Johnson decorosamente, alisando o seu paletó com ambas as mãos. “Não é a primeira vez que você se atrasa. Você já é bem grandinha, quase uma adulta. Não deveria esperar que outra pessoa lhe dissesse que é hora de se levantar. Você pode assumir a responsabilidade de se levantar na hora certa.”

“Eu sei. E normalmente faço isso”, disse Justine com sinceridade. “Foi só desta vez. Meu despertador estava programado, mas eu realmente estava cansada…”

“Então vá dormir mais cedo”, disse ele, balançando a cabeça e olhando para ela por cima da armação dos óculos.

Justine desfez o sorriso. Ela piscou os olhos rapidamente e olhou para o teto, como se estivesse segurando as lágrimas.

“Eu tive que trabalhar… mas… sim, Sr. Johnson.”

“Você é uma garota inteligente”, disse o Sr. Johnson, agora com um tom um pouco mais conciliador. “Eu não quero vê-la se metendo em problemas e desistindo da escola. Você tem futuro. Mas você tem que estar aqui, e tem que estar aqui na hora certa. Quando for adulta, será esperado que você chegue a tempo ao trabalho.”

“Sim, senhor”, concordou Justine.

Ele olhou as próprias mãos, aparentemente sem saber o que dizer depois.

“Por favor, melhore essa questão”, disse ele finalmente.

“Ok. Vou melhorar.”

O Sr. Johnson acenou sutilmente com a cabeça e se retirou. Justine o observou se afastando, chegando até o fim do corredor e dobrando.

“Velhote”, resmungou Justine.

Ela fechou a porta do armário e colocou o cadeado, trancando-o. Olhando o celular novamente, ela se dirigiu para a aula do primeiro período – agora, mais atrasada do que nunca. O Sr. Johnson queria que ela chegasse à aula a tempo, mas por que ficou conversando com ela no corredor quando ela deveria estar indo para a aula? Será que isso fazia sentido? Justine entrou na sala de aula e olhou ao redor. O professor estava de costas escrevendo na lousa, e Justine foi na ponta dos pés até a carteira e se sentou. Quando o professor se virou novamente para continuar a aula, seus olhos pousaram nela, e ele a encarou, franzindo as sobrancelhas.

“Atrasada, senhorita Bywater.”

“Sim, senhor”, concordou Justine, de cabeça baixa. “Eu já falei com o Sr. Johnson sobre isso.”

Ele ficou em silêncio por um momento, depois continuou a aula. Justine suspirou aliviada e abriu os livros.

* * *

Parecia que a hora do almoço não chegava nunca, mas finalmente o sinal tocou, e as multidões de alunos se aglomeraram no corredor, conversando e fazendo brincadeiras, correndo para os seus armários e, depois, para o almoço ou para a cafeteria para lanchar. Justine colocou os livros no armário e pegou o skate. Ela ficou na fila da cafeteria, impaciente com o skate ao seu lado. Estava morrendo de fome e não via a hora de pegar a comida. Havia duas garotas que Justine conhecia atrás dela na fila, e Justine conseguiu ouvi-las discutindo continuamente sobre o que pegar. Ambas queriam uns burritos bem grandes, mas não tinham dinheiro o suficiente para comprá-los. Ela se virou e olhou para elas.

“Eu consigo os burritos pra vocês”, ofereceu ela. “Vocês querem?”

Macy e Darlene trocaram olhares, e depois olharam para ela.

“O quê?”, perguntou Darlene. “Você tá falando com a gente?”

“Tô. Vocês querem os burritos? Eu compro pra vocês.”

Justine não aguentava ver alguém passando fome.

“Nós não precisamos que você compre coisas para nós”, garantiu Macy.

Justine deu de ombros e foi em frente. Ela colocou três burritos na bandeja, e um achocolatado. Se as garotas estavam observando as escolhas dela, elas não tinham nada a dizer sobre isso. No caixa, Justine pagou pelas refeições. Macy e Darlene saíram atrás dela. Justine se virou e presenteou as garotas com um burrito para cada uma, colocando-os nas suas bandejas.

“De onde você tirou todo esse dinheiro?”, desafiou Darlene, olhando diretamente para as roupas rasgadas e baratas de Justine.

“Eu ganhei”, mentiu Justine, “numa aposta.”

Darlene revirou os olhou e balançou a cabeça.

“Não ganhou nada.”

Justine deu de ombros.

“Então, vocês os queriam, certo? E eu os consegui pra vocês.”

Darlene concordou com a cabeça.

“Mesmo assim, você não vai se sentar com a gente”, sorriu Macy desdenhosamente.

Justine sentiu o seu rosto congelar como se fosse uma máscara. Ela tinha comprado o almoço delas, para elas não ficarem com fome, e elas ainda iam agir como se ela fosse uma leprosa? Elas podiam comer a comida dela, mas não podiam se sentar na mesma mesa que ela?

“Eu não vou comer aqui, de toda forma”, disse Justine contundentemente. “Por que eu iria querer comer com vocês?”

Justine deu meia volta e foi embora. Ela se livrou da bandeja e levou apenas o próprio burrito e o achocolatado. Ela avançou para fora da cafeteria e para fora da escola. Ela estava morrendo de raiva por causa do desprezo das duas garotas. Mas por que ela se importaria? Nem gostava delas mesmo. Ela não se importava com o que ninguém da escola pensava dela. Ela não precisava se sentar com ninguém da escola. Ela era uma garota madura, independente, durona. Ela não precisava se sentar com os amiguinhos, como no jardim de infância. Justine colocou o skate no chão e subiu nele, e deslizou rapidamente pelas calçadas. O vento batia no seu rosto, seus cabelos voavam atrás dela como uma faixa, e seu coração batia forte, enquanto ela tomava impulso cada vez mais rápido. Aquelas garotas não eram nada. Será que sabiam andar de skate? Será que conseguiam fazer alguma coisa além de colocar uma maquiagem tão pesada só para ficarem parecendo com prostitutas? Por que ela iria querer alguma coisa com elas?

Depois de um tempo, Justine desacelerou. Ela continuou andando de skate numa velocidade mais baixa, comendo o seu burrito. Os grandes burritos faziam muito sucesso na escola, e apesar de serem bem embalados em plástico, era uma bagunça tentar comê-los. Mesmo que Justine tomasse cuidado, ele pingava, e a camisa semi-limpa dela ficava manchada novamente. Como é que alguém comia aquelas coisas sem se melar todo? Justine teria dado tudo para ver Darlene e Macy tentando comer os burritos delas, limpinhas e delicadas, passando guardanapo no cantinho da boca. Com a aparência que elas tinham, Justine achava incrível que elas sequer cogitassem comer burritos. Uma salada encheria demais. Um pensamento passou pela cabeça de Justine. E se elas tivessem falado só para ver qual seria a reação dela? Talvez elas nem quisessem comer burritos, no final das contas, e só queriam saber como ela reagiria, se ela iria se intrometer e fazer papel de boba lhes comprando algo que elas nunca nem mesmo considerariam comer. Justine sentiu o seu rosto ficar vermelho, e o seu coração começou a bater forte novamente, por causa da raiva, e não do esforço físico. Será que estavam só brincando com ela? Será que só queriam ver se ela gastaria o seu dinheiro com elas? Desperdiçá-lo? Mostrar interesse em ser amiga delas para que pudessem zoar com sua cara mais uma vez? Justine estava com tanta raiva que jogou a outra metade do burrito numa lata de lixo enquanto passava com o skate. Seu sangue estava fervendo.

Ela deu uma volta na lagoa, passando rapidamente por passeadores de cães e mulheres empurrando carrinhos de bebê. As pessoas lhe olhavam com olhares irritados, mas ninguém lhe disse que ela tinha que ficar longe do parque. Ela desceu uma das suas ladeiras favoritas, e deu uns saltos sem muita vontade. Então já era hora de voltar para a escola novamente. Justine voltou ao seu armário antes de o sinal tocar, pois não queria ser repreendida por chegar atrasada duas vezes no mesmo dia. Ela passou por Macy e Darlene, que cochicharam e deram risadinhas uma para a outra, olhando para Justine enquanto ela passava.

* * *

Na aula de matemática, Megan se virou quando Justine se sentou. Ela sorriu amigavelmente para Justine. Megan tinha cabelo curto e usava óculos redondos com uma armação preta que Justine achava fazer Megan se parecer um pouco com a Velma, do Scooby Doo. Ela só precisava colocar um suéter laranja.

“Oi Justine.”

Justine a cumprimentou com a cabeça, não retribuindo o sorriso.

“Oi”, disse ela brevemente, e abriu os livros.

“Você tá bem?”, perguntou Megan.

“Tô, por quê?”

“Sei lá, parece que tá chateada ou algo assim. Só estou perguntando.”

“Me deixa quieta”, resmungou Justine. “Eu tô ótima.”

Megan se virou novamente. Phillip estava virado na frente de Megan, e disse algo para ela. Megan balançou a cabeça e eles aproximaram as cabeças um do outro e falaram baixinho por uns instantes, depois ambos olharam de novo para Justine durante a conversa. Justine não conseguia ouvir o que estavam dizendo sobre ela, mas, quase no final da conversa, ela ouviu um nome que lhe apunhalou no coração. ‘Christian’. Megan lançou mais um olhar de pena em Justine e se virou para a frente, enquanto o professor começava a aula. Justine abaixou a cabeça nos braços dobrados, fechando os olhos, com dolorosas lembranças surgindo em seus pensamentos. Seu coração doía.

* * *

Depois das aulas, Justine foi para casa para lanchar algo. Ela estava cansada e estressada, e só queria ficar vegetando em frente à televisão, comendo as suas porcarias favoritas. Mas quando chegou em casa de skate, viu que o carro de Emy já estava estacionado na frente da garagem. Ela tinha saído mais cedo do trabalho, ou tinha trazido o trabalho para casa para continuar trabalhando. Nenhuma das duas opções agradava a Justine. Ela não iria conseguir relaxar em casa com Emy estando lá.

Com uma respiração profunda e um suspiro, Justine abriu a porta da frente e entrou em casa, fazendo barulho. Emy olhou o material dela espalhado em cima da mesa da cozinha.

“Oi, meu bem”, cumprimentou ela alegremente. “Como foi na escola hoje?”

Justine revirou os olhos e passou direto pela sala de jantar e entrou na cozinha.

“Só preciso de algo para comer”, disse ela.

“Já preparei uma coisinha para você. Eu sei como você chega em casa com fome depois da escola.”

Justine olhou o prato de maçãs fatiadas e o copo de leite no balcão da cozinha.

“Fala sério!”, soltou ela. Quantos anos ela tinha, cinco? Ela enfiou a cabeça na geladeira e deu uma olhada. Obviamente Emy já tinha limpado tudo. O resto da pizza tinha sumido. Assim como o macarrão com queijo que Justine tinha feito no dia anterior. Justine foi para os armários, empurrando caixas de cereal e várias mercadorias. A limpa que Emy tinha dado na cozinha não tinha conseguido encontrar um pacote de salgadinhos que Justine tinha escondido. Justine o pegou e abriu a parte de cima para mergulhar dentro dele. Não tinha refrigerante ou achocolatado na geladeira. Mas Emy não conseguia se livrar da sua xícara de café diária, então isso ainda estava disponível, e Justine começou a preparar um café.

Emy entrou na cozinha alguns minutos depois, provavelmente sentindo o cheiro do café, e olhou Justine comendo os salgadinhos e bebendo seu espresso.

“Justine! Estamos tentando comer coisas saudáveis! Você não pode comer isso!”

“Eu posso comer o que eu quiser”, disse Justine, enfiando na boca outra mão cheia de salgadinhos, para caso Emy decidisse tentar tomá-los dela.

“Não, você não pode comer o que quiser. Isso faz mal para o seu corpo, e faz mal para o seu humor e o seu cérebro. Nós concordamos que precisávamos começar a comer de forma mais saudável, e nos livrar de todas essas porcarias que você come. O Dr. Morton disse…”

“Eu nunca concordei com nada”, interrompeu Justine. “Você e o Dr. Morton decidiram tudo isso, não eu. Eu nunca concordei em deixar de comer a minha comida e começar a comer saladas e droga nenhuma. E vocês não podem me obrigar.”

“Corpo são, mente sã”, repreendeu Emy. “Há estudos que mostram que com tratamentos nutricionais e biomédicos, você pode mudar a química do seu cérebro…”

“Eu não sou um rato de laboratório”, rosnou Justine. “Vocês não podem fazer experimentos com o meu cérebro!”

Emy riu.

“Nós queríamos que você se sentisse melhor. Nós queríamos que você se sentisse segura, que fosse feliz…”

“Vocês não fazem eu me sentir segura mexendo com o meu cérebro. E não quero que vocês mudem o meu cérebro!”

Justine tinha certeza de que se Emy conseguisse fazer com que o Dr. Morton concordasse com ela, ela logo estaria lhe prendendo eletrodos na cabeça.

“Não é como se nós a estivéssemos operando, ou injetando produtos químicos nocivos em você, ou até experimentando mais medicamentos de prescrição. Estamos apenas falando em comer de forma saudável, nutrir o seu corpo. Talvez quando você estava doente, quando era bebê, o seu corpo e cérebro não tenham absorvido tudo que precisavam. Talvez com o trauma, os nutrientes tenham sido exauridos quando você estava doente, talvez bem naquela época, isso tenha mudado as coisas, então…”

Ela parou de falar. Justine encarou Emy, deliberadamente mastigando os salgadinhos. Ela os engoliu com outro gole de café.

“Você não pode me obrigar”, repetiu ela.

“Se eu só comprar comida saudável e isso for tudo que tiver na casa…”

Justine encheu a boca com uma mão cheia de salgadinhos e os mastigou, com suas bochechas lotadas. Emy soltou o ar frustrada, e jogou as mãos para cima com nojo, virando-se e saindo da cozinha. Justine balançou a cabeça para ela e engoliu a massa de salgadinhos.

“Não mexa com a minha comida”, disse ela para o silêncio da cozinha. “Não vou deixar você fazer eu passar fome.”

Emy a deixou em paz por enquanto, e Justine subiu para o seu quarto para fazer a tarefa de casa. Mas, logo depois, Emy estava lá, abrindo a porta de repente, sem bater e invadindo o santuário de Justine. Aquilo fez Justine dar um pulo, e a explosão de adrenalina a deixou instantaneamente com raiva.

“Saia daqui!”, gritou Justine, machucando a garganta com a violência do grito. “Você não pode entrar aqui desse jeito! O Dr. Morton disse que você tem que respeitar a minha privacidade!”

O rosto de Emy estava carrancudo. Seus lábios estavam pressionados juntos, numa linha fina, e Justine se viu procurando ao seu redor por rotas de fuga. Emy estava chateada com algo, e se Justine tivesse, de alguma forma, ido um pouco além da conta…

“Cadê o dinheiro que estava na minha bolsa?”, bradou Emy.

Justine se esforçou para assumir uma atitude casual e despreocupada, esticando-se na cama e dando de ombros amplamente.

“Não sei. Cadê o dinheiro que estava na sua bolsa?”, perguntou ela.

“Você o roubou de mim. Você mexeu na minha bolsa e roubou o meu dinheiro!”

Justine levantou as sobrancelhas.

“Por que eu faria uma coisa dessas?”

“Porque você é uma bisbilhoteira ingrata! Não posso acreditar que depois de tudo que passei para ajudar você, para lhe dar do bom e do melhor, para tentar criá-la e fazer você se sentir segura, você ainda me roube! Por quê, Justine?”, indagou ela, com a voz ficando fina.

Justine recuou diante do tom elevado dela.

“Fala sério!”, disse ela. “Você vai jogar tudo nas minhas costas por que não sabe onde colocou o seu dinheiro? Que bela criação, Emy.”

“Você o roubou!”

“Prove”, disse Justine calmamente, com os olhos bem abertos e inocentes.

Emy a encarou, com os olhos cheios de fúria. Justine lutou para manter a ansiedade sob controle.

“Eu sei que você o roubou, e você sabe que o roubou. Nós não estamos num tribunal. Não se trata de provar. Trata-se de você violando o meu espaço e roubando o meu dinheiro.”

“Bem, se você tem tanta certeza de que eu roubei o seu dinheiro, o que vai fazer em relação a isso?”, desafiou Justine.

As sobrancelhas de Emy se abaixaram furiosamente.

“Você está de castigo, pra começar. E eu vou falar com o Dr. Morton sobre isso. Você vai ter que trabalhar para recuperar esse dinheiro.”

“Ah, você vai me dedurar para o Dr. Morton?”

“Estou procurando uma forma de ajudá-la, Justine!”

“Falar com um charlatão não me ajuda. Será que ele conseguiu me ajudar nos últimos dez anos?”

Emy olhou para ela por um momento, com o olhar de raiva começando a desaparecer.

“Eu acho que ele estava ajudando você por um tempo”, disse ela lentamente, “mas depois…”

A raiva de Justine aumentou com a insinuação de que ela estava doente e que eles podiam ajudá-la a melhorar.

“Não tem nada de errado comigo”, desafiou ela. “É você quem tem algo de errado. Você acha que pode ficar mandando em mim e que se eu não for uma filha obediente, então deve haver algo de errado com o meu cérebro. E o Dr. Morton fica feliz em arrancar o seu dinheiro e continuar dizendo como o meu cérebro está bagunçado. Isso é um golpe, Emy. Ele é só um charlatão. Todas aquelas terapias estúpidas – momento do abraço, terapia do jogo, os estúpidos truques para treinar cães – você acha que pode me mudar, mas não pode!” Emy abriu a boca para dizer algo, e Justine gritou mais alto. “Não pode!”

“Você estava começando a melhorar”, observou Emy. “Você e eu estávamos começando a conseguir interagir melhor, a ter um relacionamento. E depois…”, ela balançou a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas. “O que aconteceu, Justine?”

“Não aconteceu nada”, disse Justine com firmeza, encarando-a diretamente nos olhos. Emy abriu a boca. “Não aconteceu nada”, repetiu ela novamente, com a voz ríspida, e a garganta ferida de tanto gritar. “Nada.”

Emy balançou a cabeça. Ela tinha os olhos tristes, e a raiva sobre o dinheiro roubado tinha sumido. Ela tinha aquele olhar amoroso e de pena que fazia Justine se sentir encurralada. Emy atravessou o quarto, e Justine se encolheu, não por estar com medo de levar uma surra, mas porque sabia o que iria acontecer.

“Não me toque”, avisou ela.

Emy se sentou na cama e colocou o braço em torno de Justine. Justine ficou dura, e não retribuiu o gesto.

“Eu amo você, Justine.”

“Não, não ama.”

“Eu sou a sua mãe. Você é o meu bebê. E não importa o quanto você tente me afastar, eu ainda amo você.”

O abraço de Emy ficou mais forte, e ela se balançou um pouco. Justine se contorceu dentro do abraço dela.

“Eu não sou mais um bebê”, protestou Justine. “Você não pode me abraçar!”

“Você ainda é a minha filha. Eu ainda amo você. E eu sei que você precisa de abraços, mesmo que me diga que não precisa.”

Justine a empurrou, contorcendo-se para fora do abraço.

“Afaste as suas mãos de mim”, objetou ela, “senão eu vou ligar para o Serviço de Proteção à Infância.”

“E vai dizer para eles que eu te abracei?”, perguntou Emy, com uma risada curta.

“E dizer para eles que você me tocou quando eu disse ‘não’ e fez eu me sentir desconfortável. Você não pode me tocar assim. Eu conheço os meus direitos. Eu não tenho que deixar ninguém me abraçar ou me tocar. Nem mesmo você.”

A expressão de Emy se entristeceu, e Justine sabia que tinha sido entendida. Mas Emy permaneceu calma e firme. Ela teria deixado o Dr. Morton orgulhoso. Ela forçou um sorriso estático, e o amor já não brilhava nos seus olhos.

“Assim que o Serviço de Proteção falasse com o Dr. Morton, eles entenderiam. Nada aconteceria”, disse Emy, com uma despreocupação calculada.

Ambas encararam uma à outra, desafiando a outra a fazer um movimento. Por fim, Emy se levantou e saiu pela porta.

“Você está de castigo”, lembrou ela a Justine, enquanto se retirava. Ela puxou a porta e a fechou atrás de si.

Justine ficou sentada olhando para a porta fechada, e xingou Emy, murmurando.

Capitúlo 2

Justine andou de skate sem rumo pela cidade. Emy estaria esperando por ela em casa, mas como Justine estava de castigo, não tinha chance de ela voltar para casa, senão não poderia sair de casa novamente. Ela ainda tinha dinheiro no bolso, que foi destinado para comprar porcarias. Justine não iria morrer de fome, com Emy lhe negando comida. Ela iria pelo menos ter um bom jantar naquela noite.

Justine dobrou numa esquina e chegou a uma área desconhecida, com os olhos atentos para procurar boas ladeiras ou lugares para fazer saltos ou áreas interessantes para passar o tempo. Ela estava bem longe de casa, então não tinha certeza do que havia ali. Havia o lado bom de não ir para casa à noite. Ela tinha muito mais tempo para ir mais longe e fazer novas descobertas. Depois de mais algumas quadras, Justine se encontrou numa rua que parecia já ter sido a rua principal de uma pequena vila, antes de ter sido engolida pela metrópole. A farmácia, a pizzaria e o teatro pareciam antigos. Havia mais algumas frentes de loja num pequeno shopping, agora ocupado por um acupunturista, um contador e alguém chamado “Albert Farcourt” que só exibia o seu nome, e nenhuma profissão, estampado na janela. Justine diminuiu a velocidade e olhou ao seu redor. Ela deslizou no meio-fio antes de saltar com o skate no meio da rua, e fez um longo círculo na rua para voltar à pizzaria. Seu estômago já estava roncando, e aquele lugarzinho pitoresco tinha um forte cheiro de pão e queijo frescos, aos quais ela não conseguiu resistir. Ninguém a conhecia ali, e ela podia fingir que era adulta, independente, em vez de apenas uma colegial desrespeitando o toque de recolher.

Havia um sino pendurado no topo da porta, que fez barulho quando ela entrou. O restaurante estava escuro devido ao brilho do sol da tarde lá fora. Havia prateleiras giratórias em armários de vidro aquecidos que exibiam inúmeras variedades de pizza disponíveis por fatia. Justine deu uma olhada nos preços do menu no quadro-negro pendurado na parede do fundo. Os preços eram uma pechincha, e todo pedido incluía uma lata de refrigerante grátis.

Uma mulher asiática surgiu da porta da cozinha e foi até o balcão, sorrindo.

“Você quer pizza?”, perguntou ela animadamente. “Pra você, eu dou havaiana ou pepperoni, metade do preço. Já faz bastante tempo que foram feitas, e não quero que fiquem ressecadas. Ok? Eu pego pra você?”

Justine chupava a saliva extra que lhe molhava a boca, considerando as possibilidades.

“Sim”, concordou ela, “uma fatia de cada.”

“E eu pego refrigerante pra você. Você quer Coca? Pepsi?”

“Coca”, disse Justine.

“Normal? Você quer não diet, certo?”

Justine deu uma risadinha.

“Não diet”, concordou ela com a cabeça.

A pequena mulher pegou para Justine as maiores fatias de pizzas havaiana e pepperoni e as colocou num recipiente para viagem, e pegou uma lata de coca-cola da geladeira e a colocou no balcão na frente de Justine. Justine lhe entregou o dinheiro, e a mulher rapidamente o colocou no caixa e entregou a Justine o seu troco.

“Aí está, garota skatista. Você volta de novo.”

“Volto”, concordou Justine, radiante, e saiu com o jantar.

Ela tinha gostado da mulher asiática. Muitos dos estabelecimentos em torno da escola e da casa dela odiavam skatistas. Eles não permitiam skates dentro das lojas, olhavam para ela de forma suspeita, como se ela fosse uma delinquente que planejasse roubá-los ou que fosse vandalizar suas coisas. Enviavam os seguranças para segui-la pela loja. Tudo por que ela preferia usar rodas em vez de pés, ou por que tinha escolhido não poluir o meio-ambiente com um carro. Será que por causa disso ela era automaticamente uma criminosa?

Justine começou a comer a pizza se sujando toda, enquanto deslizava lentamente no skate, procurando por um parque para se sentar e continuar comendo, no qual também pudesse ter alguns equipamentos de playground ou obstáculos para desafiá-la. Em vez de um parque, ela chegou a um beco sem saída. Ela estava se virando para voltar por onde tinha vindo quando viu uma casa. Os olhos de Justine observaram a casa lentamente, enquanto ela a analisava. Grama muito alta no quintal da frente. Uma janela fechada com tábuas de madeira. Panfletos e correspondências esquecidos na caixa de correio ao lado da porta. A casa estava obviamente desabitada. Vazia. 

Justine olhou por cima dos ombros para ver se alguém a observava, depois fez um circuito lento ao redor da rua para ver se havia alguém que pudesse estar prestando atenção nela. Não havia ninguém. Algumas casas tinham luzes e TVs ligadas, mas não havia ninguém nas janelas olhando para a rua. Não havia ninguém entrando nos carros, ou empurrando carrinhos de bebê ou passeando com cães pela rua. A rua estava mais do que simplesmente calma; estava deserta. Justine desceu do skate e o pegou com a mão. Não fazia sentido ela fazer mais barulho do que o necessário. As pessoas podem se lembrar dos sons de um skatista solitário lá fora, de noite. Na ponta dos pés, Justine se aproximou da casa, examinando as janelas da frente cuidadosamente, de uma distância segura, e indo diretamente para o portão que a levava para o quintal dos fundos.

O quintal dos fundos estava uma bagunça, não estava arrumado como o da frente. Havia um aro enferrujado de algum carro velho, esquecido há muito tempo. Havia pedras e tijolos arranjados de forma circular e grosseira para uma fogueira. Havia muitas latas de cerveja amassadas e vazias e outros entulhos por ali. Justine caminhou por trás do quintal, com os olhos alertas para qualquer alarme contra ladrões ou equipamentos de vigilância e examinando a porta e as janelas para ver que segurança a casa tinha.

Não havia sinal de nenhuma vigilância eletrônica. Justine deu uma olhada através das janelas. A casa estava vazia. Tão vazia e solitária que o coração de Justine imediatamente se encheu com o desejo de possuí-la, de ocupá-la. De fazer dela a sua casa. Nenhuma outra pessoa morava ali, então por que não? Quem iria alegar que a casa, ficando ali vazia, estaria melhor do que sendo ocupada por ela? Usando a camisa como uma luva para evitar deixar as impressões digitais em alguma coisa, Justine verificou cada uma das janelas e a porta. É claro, todas estavam bem trancadas. Justine tentou alguns chutes debaixo da maçaneta da porta, mas ela não era forte o suficiente para abri-la. Procurando pelo quintal por algum tipo de alavanca, os olhos de Justine pararam nas pedras e nos tijolos ao redor da fogueira. Levantando um dos tijolos, Justine o arremessou na janela mais baixa o mais forte que conseguiu. Segundo experiência própria, vidro era muito mais difícil de quebrar do que parecia. O arremesso dela foi bom, e o tijolo caiu em algum lugar dentro da casa, com um estrondo de vidro se estilhaçando. Justine simplesmente ficou de pé lá fora por alguns minutos, escutando. Será que os vizinhos tinham ouvido? Ninguém veio investigar. Justine puxou o aro para perto da janela e o usou para subir. Ela limpou o vidro do parapeito da janela com o skate e depois com a camisa, esperando evitar se cortar ao subir. Ela deslizou o skate para dentro pela janela. Depois de contar até três, Justine se segurou no parapeito, subiu com os pés pela parede, depois empurrou com as pernas para ficar na altura dos olhos, depois na altura da cintura, depois o corpo todo. Ela se trepou no parapeito e pulou para dentro, no chão.

Olhando ao seu redor, Justine esfregou as mãos na calça jeans para se livrar dos pequenos cacos de vidro. Alguns deles não saíram, e ela teve que tirar lascas de vidro das mãos, que sangraram com pequenos filetes vermelhos, mas nada sério. Não precisava levar pontos, e sua vacina contra tétano estava em dia. Como uma skatista, ela sabia muito bem quando tinha tomado a última vacina antitetânica.

Justine explorou a pequena casa. Ela estava empoeirada e sem nada, mas Justine achou que ela tinha personalidade. Havia pequenos sinais de pessoas que já tinham morado naquele lugar. Pequenas coisas deixadas aqui e ali. Um belo papel de parede no quarto do bebê. Uma temática de patos brancos com aventais vermelhos na cozinha.

Justine se sentou no chão da sala de estar. Ela olhou para as persianas cobrindo a janela e se sentiu irritada. Algo não estava certo. Se esta fosse a casa dela… Ela não colocaria persianas, só cortinas. Não tinha problema se o sol invadisse a sala de manhã cedo. Isso a deixaria mais… rústica, mais acolhedora. O tapete do piso tinha a cor errada, mas na penumbra da sala, isso não importava tanto. Justine tentou visualizá-la com móveis. O confortante zumbido de uma TV. Algum lugar para se sentar. Um cobertor espalhado no chão para a criança. Tudo ficava tão claro quando ela fechava os olhos, que ela quase conseguia tocar. Mas quando ela abria os olhos, a sala estava vazia; isso estava errado. Ela se sentia tentadoramente tão perto, mas frustrantemente incapaz de alcançar isso.

Talvez quando ela fosse adulta – se é que ela iria conseguir chegar à vida adulta –, ela se tornasse uma decoradora de interiores. Ela adorava a forma como se sentia numa casa vazia. Ela via em sua mente tão claramente como tudo deveria ser. Ela sabia exatamente como deixar tudo do jeito certo. Mas um cliente provavelmente teria a sua própria opinião, sua própria ideia de como as coisas deveriam ser, e não corresponderia à imagem na cabeça de Justine.

Ela se deitou no chão e olhou para o teto, feixes de luz alaranjada do fim da tarde faziam longas linhas através do teto pontilhado. Isso não estava muito certo. Deveria ser… Como deveria ser? Justine fechou os olhos para visualizar.

O celular de Justine tocou dentro do seu bolso, dando-lhe um susto. Mesmo sem olhar, ela sabia quem seria. Emy. Exigindo saber onde ela estava e por que não estava em casa. Justine tinha desabilitado a função de localização do celular. Emy tinha comprado o celular para Justine, com a intenção de ela própria usá-lo para rastrear os movimentos da filha. O que ela era, estúpida? Todo adolescente conhecia esse truque. Mesmo assim, os pais ainda insistiam em tentá-lo. Alguns alunos deixavam o rastreamento de localização ligado quando estavam na escola ou em lugares onde deveriam estar, apenas desligando-o em raras ocasiões, quando precisassem dar uma escapada, e alegavam que eram pontos cegos do GPS quando lhes perguntavam sobre isso. Justine não podia ser incomodada. Ela simplesmente o desligou.

Depois que a chamada foi para o correio de voz – infelizmente a caixa do correio de voz de Justine já estava cheia com outras mensagens de Emy, e Emy não conseguiria deixar uma nova mensagem –, Justine o ligou. Ela abriu um aplicativo para descarregar a bateria; um programa que era bem útil quando você quisesse condicionar a sua bateria. Ela iniciou um ciclo de descarregamento, sentou-se e observou o indicador ficando cada vez mais fraco, até que a energia acabou de vez.

Sinto muito, Emy, minha bateria descarregou.

Ela se deitou no chão e fechou os olhos, visualizando como queria que a sala ficasse. À medida que a sala escurecia, ela adormeceu.

* * *

Justine teve sonhos agitados, sempre tentando alcançar o que nunca conseguia pegar. Ela se acordou algumas vezes, ficando cada vez com mais frio e desconfortável no chão. Mas ela apenas fechava os olhos novamente, visualizando a casa dela, a casa como deveria ser na sua imaginação, e voltava a dormir.

Ela acordou com um susto, ao som da porta dos fundos sendo aberta. Justine rolou sonolenta e tentou se orientar e descobrir o que estava acontecendo. Ela estava numa casa vazia. A sala estava escura, e apenas um pouco de luz do poste lá fora passava pelas brechas nas persianas. Havia outra pessoa ali. Alguém tinha acabado de entrar na casa. Esforçando-se para se mover, se preparar para escapar ou se proteger, Justine se arrastou pelo chão até a parede, ficando abaixada e nas sombras mais escuras. Passos atravessaram a cozinha em sua direção. A luz de uma lanterna passou pelo chão, ocasionalmente resvalando nas paredes ou em outra direção, enquanto o ladrão explorava a casa. Justine se espremeu na parede, tentando evitar a lanterna. Se o feixe de luz a pegasse…

Ela escutou um barulho confuso de um rádio. Justine prestou atenção nele, franzindo as sobrancelhas. Um ladrão com um walkie-talkie? Será que ele tinha um comparsa lá fora? Ela estava planejando fugir por trás dele, se tivesse uma chance, mas talvez, em vez disso, devesse criar coragem e ir pela porta da frente. O comparsa do ladrão podia estar na porta dos fundos, esperando por ela. Quando o homem passou pela entrada da sala de estar, sua silhueta foi projetada momentaneamente contra a janela da cozinha, e Justine conseguiu vê-lo inclinar a cabeça em direção ao ombro enquanto pressionava o botão no seu walkie-talkie e responder algo. Ela congelou, observando-o. Que tipo de gatuno era esse?

Ele passou a lanterna pela sala, e a hesitação momentânea de Justine a entregou.

“Fique parada bem aí!”, comandou a figura sombria.

Justine ficou parada. Ele mirou a lanterna diretamente no rosto dela.

“Quem é você? O que está fazendo nesta casa?”, perguntou ele, movendo-se em direção a ela.

Justine não respondeu, fechando os olhos e tentando vê-lo, apesar da luz ofuscante.

“Você é o quê, um policial?”, perguntou ela, conseguindo apenas reconhecer um uniforme.

Agora ele estava perto dela, e a segurou pelo braço e a colocou de frente para a parede.

“Mãos na parede”, ordenou ele, empurrando Justine para a frente e tirando o seu equilíbrio para que ela fosse forçada a se apoiar com ambas as mãos na parede. Com uma das mãos, ele continuou empurrando-a pela parte inferior das costas, mantendo-a contra a parede, e com a outra mão revistou os bolsos dela, jogando tudo que tinha dentro deles no chão. Depois ele a puxou para trás, abaixando os braços dela e colocando-os atrás das costas e prendendo-a com um par de algemas.

“Você é da polícia?”, repetiu Justine.

“Segurança”, disse ele. “A polícia está chegando.”

Ele mirou a lanterna no rosto dela de novo, e depois, enquanto as imagens na retina dela flutuavam na sua frente, ele mirou a lanterna nos itens que tinha retirado dos bolsos dela, e pela sala.

“Pra fora”, ordenou ele.

“Mas as minhas coisas…”, protestou Justine.

“A polícia vai cuidar das suas coisas. Vamos. Pra fora.”

Ele a empurrou em direção à porta dos fundos, e Justine deixou que ele a escoltasse para fora da casa. Ele a levou pelo quintal dos fundos, passou pelo portão, depois para a frente da casa, e fez com que ela se sentasse no meio-fio.

“Fique aqui e se comporte”, ordenou ele.

Com a luz dos postes, ela finalmente conseguiu vê-lo. Um uniforme de empresa de segurança particular com o walkie-talkie pendurado no ombro, como um policial. Ele era alto, acima do peso, meia idade, branco. O carro dele estava estacionado na frente da casa do vizinho, e outro homem, magro e com os cabelos começando a ficar brancos por causa da idade, veio conferir.

“Você verificou o resto da casa?”, perguntou ele.

“Ainda não. Fique aqui com ela. Vou ver se está tudo limpo.” Ele olhou para Justine. “Tem mais alguém lá dentro?”

Justine balançou a cabeça.

“Não, só eu.”

Justine virou a cabeça para observá-lo indo para o quintal dos fundos e sumir das suas vistas. Ela bocejou e esfregou a boca no ombro da camiseta.

“Vocês fazem rondas toda noite?”, perguntou ela ao segurança mais velho.

Ele concordou com a cabeça.

“Sim.”

Uma viatura de polícia com luzes piscando encostou perto deles, e um jovem oficial saiu da viatura e se aproximou.

“Essa é a ladra?”, perguntou ele desnecessariamente.

“É”, concordou o segurança mais velho. “Ela estava na casa. Daniel entrou lá de novo para averiguar o resto. Para se certificar de que o namorado dela não está lá.”

“O que você estava fazendo lá dentro?”, indagou o policial, virando-se para Justine.

Justine olhou para ele. Ela sempre gostava dos policiais. Mesmo quando estava numa encrenca por causa de alguma coisa, eles a faziam se sentir protegida e segura. Ele tinha um rosto amigável. Bem barbeado, cabelo no estilo militar. Olhos que brilhavam na escuridão. Justine sorriu para ele.

“Qual é o seu nome?”, perguntou ela.

“Sou o Oficial Carter”, disse ele, numa voz contida. “Qual é o seu nome e o que estava fazendo naquela casa?”

“Dormindo. Meu nome é Justine.”

“Justine de quê?”

“Justine Bywater.”

“Quantos anos você tem, Justine?”

“Quinze.”

“O que estava fazendo na casa?”, insistiu ele.

Justine deu de ombros, inclinando a cabeça para ele.

“Só dormindo”, disse ela com um sorriso largo.

O segurança voltou da casa e cumprimentou o Oficial Carter com a cabeça.

“Quer ir lá dentro?”, perguntou ele.

“Quero, é melhor eu dar uma olhada.”

Os dois homens voltaram para dentro da casa. Justine olhou para o segurança idoso outra vez, com um suspiro. Era desconfortável ficar sentada no meio-fio com as mãos algemadas atrás das costas. Ela girou os ombros e mudou de posição, tentando ficar mais confortável. O cóccix dela doía. Os dois homens não demoraram muito, e logo tinham voltado da casa novamente. O Oficial Carter colocou no chão o skate de Justine e seus outros pertences.

“Você não é uma sem-teto”, disse ele para ela.

“Não”, concordou Justine. “Eu não disse que era uma sem-teto.”

“O que você está fazendo dormindo em uma casa vazia?”

Justine deu de ombros e revirou os olhos.

“Eu me afastei muito de casa e me perdi. Não consegui encontrar o caminho de volta. Quando passei por essa casa, vi a janela quebrada e entrei… Só me deitei por um minuto para descansar…”

“Você está mentindo pra mim, e nem está fazendo isso direito.”

“Por que eu mentiria pra você?”

“Você fugiu de casa? É isso?”

“Não. Eu só não consegui encontrar o caminho pra casa”, disse ela inocentemente.

“Por que você não fez um telefonema para pedir ajuda? Você tem um telefone”, mostrou ele com a ponta do sapato.

“A bateria descarregou.”

Carter pegou o telefone dela e pressionou o botão de ligar. O telefone não ligou. Ele o jogou novamente na pilha das coisas dela.

“Você poderia ter conseguido ajuda em outro lugar. Poderia ter pedido um telefone emprestado de alguém. Ido para uma loja. Tem muitas opções.”

“Acho que sim. Só fiquei confusa, sabe?”

Ele a estudou, franzindo as sobrancelhas.

“Não consigo entender por que você invadiria uma casa vazia para dormir nela, a menos que houvesse algo de errado com você.”

Justine sentiu o seu rosto ficar vermelho, e esperava que ele não pudesse ver isso na luz fraca da rua. Não tinha nada de errado com ela. Só tinha sido um impulso. Algo para fazer.

“Levante-se”, disse o Oficial Carter.

Justine ficou de pé com certa dificuldade. Não ajudou que ela tivesse dormido no chão frio a noite toda. Segurando os pulsos dela atrás das costas, o Oficial Carter revistou os bolsos dela para se certificar de que o segurança não tinha esquecido nada.

“Você está presa por arrombamento e invasão”, disse ele.

“Eu não arrombei! Já estava quebrada. Eu só… entrei.”

“Não é a sua casa, querida. Você não pode fazer isso.”

Justine suspirou. Ele a levou até a viatura e abriu a porta de trás.

“Cuidado com a cabeça”, avisou ele, ajudando-a a entrar. Justine sentiu uma calorosa descarga de prazer com as fortes mãos dele guiando-a para entrar na viatura. Ela colocou os pés para dentro, e depois ele fechou a porta, trancando-a lá dentro. Ela pensou que ele entraria na viatura imediatamente, mas ele passou mais tempo conversando com os seguranças, e entrou na casa mais uma vez. Finalmente, ele voltou, entrou na viatura e se sentou no banco da frente.

* * *

Foi uma demora longa e chata na sala de espera da delegacia. Justine estava algemada num banco, com as mãos para a frente, entre as pernas. Era um pouco mais confortável do que o meio-fio de concreto, mas nem tanto. A sua bunda ficou dormente enquanto ela estava sentada lá, observando os outros detidos chegarem e saírem. Muitos deles eram bêbados, de todos os tipos: bêbados sem-teto, bêbados vestidos para a noite na cidade, bêbados barulhentos e divertidos, bêbados bastante taciturnos. Alguns deles estavam doentes. Alguns outros mal estavam conscientes. Justine não fazia ideia de que tanta gente na cidade enchia a cara em uma noite. Havia algumas outras detenções. Uma garota que tinha vandalizado o carro do namorado. Uma invasão numa loja de bebidas. Uma briga de facas entre um cavalheiro alto e de aparência comum e um rapaz hispânico baixo, de cabelo comprido e com aparência selvagem, que exibia os dentes a quem o olhasse. Apesar de todas as chegadas e partidas, Justine estava entediada. Ela não conseguia imaginar por que estava demorando tanto.

Finalmente, ela viu Emy entrar e se aproximar do balcão de informações.

“Emy! Emy, estou aqui!”, chamou Justine.

Emy olhou para ela e seus olhares se encontraram. Emy balançou a cabeça com desgosto. Justine deu uma risadinha para a expressão dela. Emy continuou falando com o oficial no balcão de informações, e finalmente o Oficial Carter apareceu e a cumprimentou com a cabeça, indicando que ela o seguisse. Justine conseguiu ouvir as palavras dele à medida que ele se aproximava dela.

“Ela estava dormindo numa casa vazia. Os proprietários têm uma ronda de segurança noturna, e perceberam a janela quebrada e foram averiguar.”

“Justine”, disse Emy para ela com frustração. “De novo? Por que você faz isso?”

Justine deu de ombros.

“Oi Emy”, disse ela com um sorriso alegre.

O Oficial Carter olhou para Emy, franzindo as sobrancelhas.

“Ela já fez isso antes?”, perguntou ele. “Não estava na ficha dela.”

Emy respondeu que sim com a cabeça.

“Tínhamos conseguido deixar isso de fora até agora… ela tem um… um tipo de problema psicológico. Ela não quis prejudicar ninguém. É só… um tipo de compulsão. Tem alguma forma… em que pudéssemos pagar pela janela e deixar isso fora da ficha dela?”

“Parece que isso não funcionou muito bem das outras vezes.”

“Ela tem uma doença”, protestou Emy. “Você não pode puni-la por algo que ela não consegue controlar!”

“Não tem nada de errado comigo”, exclamou Justine. “Só por que eu não quero estar com você, não significa que tenha algo de errado comigo!”

“Ela tem um psicólogo”, disse Emy a Carter, com a voz mais alta que a de Justine. “Você pode ligar para ele, fale com ele sobre isso. Ele vai lhe explicar…”

“Senhora, isso vai para a ficha dela desta vez”, disse Carter com firmeza. “Você não pode continuar tentando protegê-la. Deixe-a sofrer as consequências dos seus atos, e talvez ela aprenda.”

O rosto de Emy ficou vermelho.

“Por favor, será que você não entende que estamos tentando ajudá-la? Não se trata de disciplina…”

“Ela está infringindo a lei. Ela está danificando a propriedade de outras pessoas. A minha compaixão pelos problemas dela termina aí. Ela está tomando medicamentos para essa ‘compulsão psicológica’?”

“Ah – não. Nós já tentamos alguns medicamentos antes, mas isso não funcionou muito bem. Neste momento, estamos trabalhando com intervenções biomédicas –”

“Dieta?”, questionou Carter. “Isso está funcionando?”

“Bem…”, Emy não conseguiu evitar parar de falar ao olhar para Justine.

“Será que podemos pelo menos ir embora daqui?”, perguntou Justine. “Estou cansada de ficar sentada o tempo todo.”

Emy olhou para ela, depois para Carter.

“Você pegou os papéis dela no balcão da recepção?”, perguntou Carter.

Emy respondeu que sim com a cabeça, mostrando os papéis.

“Isso vai lhe dizer a data em que ela deve estar no tribunal. Vá em frente e diga ao juiz que ela tem problemas mentais. Talvez ele a libere. Mas eu não contaria com isso. Não é à toa que temos leis. Se ela for incapaz de obedecer à lei, então talvez deva ser colocada em uma instituição onde não possa prejudicar ninguém.”

O queixo de Justine caiu. Colocá-la em uma instituição? Ela tinha ficado tão enamorada pelo Oficial Carter, que não podia acreditar que ele a trairia dessa forma.

“Eu não pertenço a uma instituição”, disse ela a ele, com a voz falhando por causa da emoção. Lágrimas começaram a rolar dos seus olhos.

“As pessoas que invadem casas são presas, de um jeito ou de outro”, disse Carter secamente, sem nenhuma simpatia. “Se você não quiser ser presa, talvez devesse parar de infringir a lei.”

Justine o encarou, com a boca aberta, tentando pensar numa resposta. Ele se inclinou para soltar as algemas de Justine.

“Eu fugi”, disse Justine rapidamente, tentando trazê-lo de volta para o seu lado, antes que fosse tarde demais. “Você tem razão, eu fugi, e não tinha outro lugar para onde ir, então eu só… a janela já estava quebrada, e eu só estava procurando por um canto para passar a noite. Eu não ia nem ficar lá. Eu só queria um lugar para dormir, onde ninguém pudesse mais me machucar. Não me mande para casa com ela, ela vai me bater!” Ela deixou o seu sentimento de pânico ser mostrado, alimentando a história. “Eu fugi para escapar de tudo aquilo. Ela vai me prender! Você disse a ela que eu deveria ser presa, e ela vai me acorrentar no porão de novo! Ela vai me açoitar, e não vai nem me alimentar, e vai me prender…”

“Já chega!”, disse Carter. “Se você tivesse fugido, teria me dito lá na casa. Já lidei com muitas crianças fugitivas e também que sofreram abusos, e você não é nenhuma delas. Se quiser prestar uma queixa, ligue para o Serviço de Proteção à Infância. Você pode usar aquele telefone ali. Eu não vou fazer um relatório, porque isso é claramente uma mentira.”

Lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Justine, e ela se agarrou ao braço de Carter. Ela queria ficar ali, e não ser enviada de volta para casa com Emy.

“Por favor, me ajuda”, implorou ela.

“Ajude-se a si mesma”, disse ele, indicando novamente o telefone preto na parede. “O número está ao lado do telefone.”

Justine deixou as mãos caírem, soltando Carter.

“Obrigada, Oficial”, disse Emy com um suspiro. “Talvez você tenha razão.”

Ela empurrou Justine sutilmente em direção à porta. Justine se assustou com o toque de Emy e recuou, rosnando para ela.

“Não me toque!”

“Vamos. Para casa.”

Justine a seguiu pela sala lotada, com seu estômago apertado e vazio. Foram para o carro. Justine pegou com Emy o skate e a sacola com seus pertences e entrou no carro.

“O que vou fazer contigo?”, perguntou Emy. Justine não disse nada, olhando pela janela. “Talvez ele tenha razão”, disse Emy. “Talvez eu tenha que deixar você sofrer as consequências dos seus atos. Deixá-los prendê-la. Talvez se eu fizesse isso, então você entenderia como é que as coisas funcionam.”

Justine observou o céu noturno passar velozmente pela janela. Sem estrelas, as luzes da rua evitavam que ela conseguisse ver o céu noturno. Exceto pela lua. Uma vez, ela e Christian tinham ido andar de skate numa colina, no parque natural. Eles se deitaram no topo da colina, longe de todas as luzes da cidade, e olharam para cima, para as estrelas. Justine nunca tinha imaginado que houvesse tantas estrelas.

“Você não vai me responder?”, disse Emy. “Você não tem nada para dizer?”

Justine só olhou para a escuridão além das luzes.

* * *

Na manhã seguinte, o Dr. Morton olhou fixamente para Justine, esperando que ela falasse. Mas Justine já era paciente dele há anos, e conhecia todos os seus truques. Os adultos pensavam que se ficassem em silêncio por tempo o suficiente, você falaria, para preencher o silêncio. Preenchê-lo com qualquer coisa. Mas Justine era esperta e conhecia esse truque. Ignorando o Dr. Morton, ela ficou olhando pela janela lá para fora, observando os pombos alinhados no telhado da casa vizinha. Era quase como se estivessem jogando um jogo. Um voaria da borda e pousaria quase em cima do outro. Então este pombo voaria e faria a mesma coisa, pousando não onde houvesse um espaço vazio, mas em cima de outro pombo, que, por sua vez, voaria e faria a mesma coisa. Às vezes, havia variações nas regras. Dois pombos voariam, em vez de apenas um, ou o pombo na ponta se arrastaria com os pés até ficar sozinho, fora do jogo. Justine sentia que os pássaros eram muito mais inteligentes do que a maioria das pessoas achava que eles fossem.

“Então…”, o Dr. Morton finalmente começou, desistindo que Justine falasse por conta própria. “Sobre o que você quer falar comigo?”

“Não estou aqui por que quero falar com você”, frisou Justine. “Estou aqui por que a Emy me trouxe. Se eu pudesse escolher, preferiria estar na escola.”

O Dr. Morton era um pouco mais alto que a média, suas longas pernas se esticavam diante dele, enquanto ele se sentava em um ângulo atrás da sua mesa. Ele era mais velho que Emy. Talvez fosse até mais velho que o diretor da escola. Ele estava ficando grisalho na lateral da cabeça, contudo, ou tinha cabelos em toda a cabeça ou uma bela de uma peruca. Ele parecia tipo um médico de Hollywood, todo devidamente escovado, penteado e ajeitadinho. Casualmente devastador. Porém, velho demais para que Justine se interessasse por ele. Ele seria mais velho que o pai dela – se ela tivesse um pai em algum lugar.

“Você teve alguns problemas ultimamente”, sugeriu Morton.

“Nada fora do normal”, disse Justine, dando de ombros sem se importar.

“Você foi detida”, observou ele. “Isso é novo.”

“Não… o fato de que eu não consegui sair dessa é que é novo.” Justine balançou a cabeça com um desânimo dissimulado. “O jovem Oficial Carter só não estava a fim de aliviar a minha barra.”

“Por que você acha isso?”

“Talvez ele não goste de garotas”, sugeriu Justine com uma risada. Ela tentou manter o humor leve e evitar discutir a situação de forma séria. O Dr. Morton não esboçou nenhum sorriso.

“É isso que você acha?”, perguntou ele, marcando alguma coisa na ficha diante dele.

“Não. Acho que ele é apenas durão mesmo, apesar de não parecer. Ele parecia bem amigável. Mas…”, Justine balançou a cabeça novamente, “não consegui influenciá-lo. Ele estava convencido de que eu era uma criminosa reincidente que precisava perceber o que tinha feito de errado.”

“E isso não é verdade?”, questionou o Dr. Morton.

“Bem… é, acho que sou uma criminosa reincidente”, admitiu Justine.

“Mas você não precisava perceber o que tinha feito de errado?”

“Não estou prejudicando ninguém.”

“Você está prejudicando o dono da casa. Você quebrou uma janela.”

“Como é que isso prejudica alguém? Emy se ofereceu para pagá-la.”

“Então isso prejudica a sua mãe, não é?”

“Se ela me fizer trabalhar para compensar isso, então a única pessoa prejudicada sou eu. Então, quem se importa?”

“Não imagino que a sua mãe goste de tirá-la da cadeia, levá-la ao tribunal, trazê-la aqui ou fazê-la trabalhar para pagar pela janela. Isso é realmente bastante coisa para se fazer por que você decidiu invadir outra casa.”

“A Emy gosta de se fazer de vítima. Ela fica feliz quando tem algo com o que se lamentar, para que as pessoas sintam pena dela.” Justine simulou uma voz dramática. “Pobre Emily, e que pena que ela tenha que passar por todo esse inferno por causa da filha teimosa que ela tem. Isso é simplesmente escandaloso. Ela deve ser uma santa por aguentar toda essa merda.”

Justine sorriu, orgulhosa da sua encenação. Morton levantou uma sobrancelha.

“Você acha mesmo?”

“Claro. Você conhece o drama que ela faz sobre o meu comportamento. Sempre exagerando e inventando coisas. Eu estou é fazendo um favor lhe dando algo para falar.”

“Hmm.” Morton ficou em silêncio, escrevendo algumas anotações. Depois de uns instantes, levantou os olhos novamente. “Como você estava se sentindo antes de invadir a casa?”

“Eu não invadi”, disse Justine, “o vidro já estava quebrado.”

“Não estamos aqui para discutir semântica.”

“Não é semântica”, discordou Justine, arreganhando os dentes ironicamente.

“Justine”, Morton a repreendeu com firmeza. “Chega. Responda à pergunta.”

“Não sei. Eu estava me sentindo… com raiva, porque a Emy me colocou de castigo.” Ela olhou para Morton, tentando se controlar. Os sentimentos sempre eram confusos para ela. Havia algo que ela não podia identificar muito bem. “Essa é a resposta certa?”

“A verdade é a resposta certa. Essa é a verdade?”, continuou ele.

“Sei lá. Eu estava me divertindo andando de skate. Comprei uma fatia de pizza para jantar. Tudo ótimo. Não sei o que senti.”

“Pizza?”, perguntou Morton, franzindo as sobrancelhas. “Pensei que você estivesse se desintoxicando.”

“Claro”, concordou Justine. “Você acha que a Emy ia me dar uma pizza de verdade, toda gordurosa e cheia de glúten e laticínios e produtos animais e tudo?” Justine fez uma pausa e ficou com água na boca, pensando na pizza. “Não, isso foi algo que ela escolheu na loja de comida saudável. Livre de todas aquelas toxinas e alimentos geneticamente modificados e tudo mais. Não é exatamente o que eu chamaria de pizza. Estava tudo bem… mas parecia um pouco com papelão.”

Ele aprovou com a cabeça.

“Ótimo. Você vai se acostumar. O seu corpo vai se sentir muito melhor, e você vai conseguir funcionar melhor.”

“Certo”, Justine balançou a cabeça ligeiramente, apesar de não gostar da ideia. “Já estou sentindo a minha mente muito mais clara.” Ela sorriu forçadamente.

Ele concordou com a cabeça lentamente.

“Mas este incidente é preocupante. Eu gostaria de saber por que você sente este impulso de invadir as casas das outras pessoas. O que está acontecendo dentro de você que faz você fazer isso, quando você mesma sabe que é errado e vai simplesmente acabar tendo problemas?”

“Se eu soubesse disso, você estaria desempregado.”

Morton deu uma risadinha agradecida.

“Acho que eu estaria mesmo. Vamos mais fundo e tentar ver se podemos descobrir isso. Da primeira ou da segunda vez, achei que fosse apenas algum tipo de curiosidade ou rebeldia. Mas parece que tem mais coisas do que apenas isso. Já faz algum tempo que você tem continuado com este comportamento. O que você acha que está acontecendo?”

Justine revirou os olhos.

“Doutor… Acho que eu só quero viver por conta própria. Ser independente e não ter que morar com a Emy, sabe? É só isso.”

“Isso é uma armação”, disse Morton.

Justine se contorceu no assento. Ele já a conhecia há bastante tempo, tinha escavado dentro do cérebro dela por anos demais. Ele não iria aceitar uma resposta qualquer. Não iria pegar a primeira coisa que ela oferecesse. Justine era muito impertinente, muito cheia de si para que ele acreditasse nela. A verdade demorava mais tempo para aparecer. Era necessário bastante trabalho e algumas lágrimas. Senão ele nunca acreditaria.

“Por quê?”, desafiou Justine, de toda forma, ganhando tempo para pensar numa resposta melhor.

“Porque você sabe que não pode ficar lá. Você sabe que não pode deixar de morar com a Emy e viver numa casa abandonada por conta própria. Você sabe que, mais cedo ou mais tarde, os proprietários ou os policiais vão aparecer e chutar você para fora. Você pode até querer se livrar da Emy e cuidar de si mesma, claro. Você pode querer ser emancipada ou fugir. Mas este não é um comportamento de alguém que foge. Este é… não sei”, meditou ele. “É outra coisa. Como você se sente quando entra em uma dessas casas?”

“Não sei. Eu só me sinto… segura”, Justine se esforçou para encontrar uma palavra que fosse mais adequada, mas não conseguiu. “Sei lá.”

“Segura como?”

Justine levantou bastante as sobrancelhas e deu de ombros.

“Apenas segura. Em casa. No lugar a que pertenço.”

“A que outro lugar você sente que pertence?”, perguntou o Dr. Morton, tocando a sua lapiseira nos dentes da frente por um momento, depois rabiscando algo no seu bloco de notas. “Conte-me sobre esse sentimento.”

“Eu não pertenço a lugar nenhum”, disse Justine, balançando a cabeça determinadamente. “Eu não pertenço à Emy. Eu não pertenço à escola. Eu não tenho nenhum amigo. Eu não tenho nada. Mas eu gosto… eu gosto de estar na minha própria casa.”

“Exceto que essa não é a sua própria casa. Não é nem uma casa que seja confortável. É uma casa vazia.”

“E daí? É lá onde eu me sinto melhor”, disse Justine. “Eu consigo imaginar tudo.”

Morton fechou os olhos e inclinou a cadeira para trás.

“O que você imagina? É sempre do mesmo jeito? A mesma sala, os mesmos móveis? Ou depende da casa?”

Justine hesitou. Depois de um minuto, Morton abriu os olhos e olhou para ela.

“Vamos, Justine. Feche os olhos e descreva a casa para mim. Ajude-me a ver como ela é e como você se sente dentro dela.”

Justine olhou pela janela e viu os pombos. Onde eles foram dormir? Será que dormiram em cima do telhado, ou será que têm ninhos em uma árvore ou em uma catedral em algum lugar? Será que estavam juntos em revoada ou seria apenas pura sorte que estivessem todos no mesmo lugar? Será que eram amigos e parentes, ou seriam apenas estranhos brincando de um jogo de ‘derrubar o pombo da borda’?

“Sei lá”, disse Justine finalmente, sem fechar os olhos, porém visualizando a casa no ar, diante de si. Era nebulosa, sem forma. Imaginá-la nunca era o mesmo que estar lá, realmente estar na sala com sua visão. “É… escura… os móveis são grandes e velhos. O tapete… tem aqueles enormes emaranhados de fios de lã. Marrom escuro. Meio que me lembra um cachorro gigante que deixa você se deitar nele como se fosse um travesseiro. Às vezes, tem barulho… pessoas falando lá longe… apenas barulhos normais de outras pessoas vivendo suas vidas.”

“Quadros nas paredes?”, perguntou Morton. “Alguma outra pessoa?”

Mônica estava lá, pensou Justine. Parte do tempo, mas não sempre. Katie sempre estava lá. Elas lhe faziam companhia. Ela nunca estava só. Mas não havia adultos para machucá-la ou lhe dizer o que fazer. Apenas as outras. Suas irmãs. Seu verdadeiro ‘eu’. A pessoa que ela deveria ser. Mas ela não tinha falado com o Dr. Morton sobre Mônica e Katie há muito tempo. Ele pensou que elas tinham sumido.

“Ninguém mais”, mentiu ela. “Só eu. Quadros… não sei se tem quadros. Eles estão muito altos para eu conseguir ver.”

“Hmm”, concordou Morton lentamente com a cabeça. “Interessante. E o que você gostaria de fazer lá? Como você passaria o tempo ou se manteria ocupada? Tem brinquedos, livros, televisão?”

“Tem uma TV”, concordou Justine, “mas é muito chato. Normalmente, eu fico só dormindo.”

Agora ela fechou os olhos, ainda imaginando. Imaginando como era tranquilo ficar por conta própria. Sozinha, por conta própria, caindo no sono com o zumbido da televisão, com sua bochecha pressionada contra o velho tapete felpudo marrom.

* * *

Emy levantou os olhos quando o Dr. Morton saiu do consultório, fechando a porta silenciosamente atrás de si.

“Está tudo bem?”, perguntou ela, com uma preocupação imediata. Normalmente, ele não deixava Justine sozinha, e não precisava falar com Emy em particular. Isso normalmente significava algo sério.

“Está tudo bem”, garantiu o Dr. Morton, sorrindo. “Não fique nervosa. Acho que hoje fizemos algum progresso.”

“Sério? Isso é ótimo.”

“Ela dormiu”, disse ele, apontando com a cabeça para a porta fechada.

“Dormiu? Por quê? Bem, acho que ela ficou acordada metade da noite, na delegacia de polícia e tudo mais…”

“Acho que é um tipo de fuga dissociativa ou auto-hipnose. Uma espécie de dissociação.”

“Isso parece perigoso.”

“De jeito nenhum. Acho que estamos mais perto de descobrir a raiz dos problemas psicológicos dela.”

Emy juntou os lábios, fechando um pouco os olhos para ele.

“Pensei que você achasse que provavelmente era por causa de quando ela estava doente quando era bebê. Ela não criou um vínculo comigo direito por que estava no hospital, e isso causou problemas comportamentais.”

“Essa é uma das hipóteses… mas isso sempre foi um tanto quanto exagerado, pois o transtorno do apego normalmente se baseia numa experiência traumática, ou numa prolongada separação do cuidador ou num período de negligência. Você disse que ela não esteve no hospital por tanto tempo, e quando ela estava lá, você normalmente estava lá com ela. Ela não estava em isolamento, e você podia abraçá-la e manter um vínculo.”

Emy deu de ombros sem saber o que dizer.

“Mas você pensou que provavelmente foi isso.”

“Justine já esteve longe de você por algum outro período de tempo?”, incitou ele.

Emy balançou a cabeça.

“Conte-me sobre onde vocês moraram quando ela era menor.”

“Como assim?”

“A casa onde vocês moravam. Descreva os cômodos e a decoração para mim.”

“Nós sempre moramos aqui”, disse Emy, “na mesma casa.”

“Ela nunca morou em nenhuma outra casa?”

“Não.”

“Nem ficou com outra pessoa, uma tia ou irmã ou alguém, enquanto você tinha que ir para outro lugar?”, insistiu ele.

“Não”, Emy balançou a cabeça.

“Só no hospital.”

“E isso foi apenas por duas semanas, e eu estava lá, cuidando dela.”

O Dr. Morton suspirou.

“Ela continua se esquivando de mim”, suspirou ele.

“Você ainda vai demorar muito tempo?”, disse Emy, olhando para o relógio.

“Não. Vou trazê-la de volta desse estado dissociativo e continuar. Não deve demorar mais muito tempo. Simplesmente… não faz sentido. Não acho que ela esteja mentindo para mim, mas o que ela diz simplesmente não se encaixa. Simplesmente não faz sentido.”

Emy concordou com a cabeça compreensivamente.

“Eu sei… eu queria poder ajudar.”


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Por Conta Própria

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