O Segredo de Cynthia

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✨Capítulo 1

Carmina pôde ver os giroflexes antes de chegar à sua propriedade. Ela sabia que estavam perto e estava curiosa para saber o que os vizinhos estavam fazendo para que a polícia estivesse lá. Júlio, o pai dela, estava sempre desconfiado sobre o que seus vizinhos estavam tramando, então não foi surpresa alguma para Carmina que eles estavam em apuros. 

Mas ao se aproximar, ela percebeu que os veículos não estavam, de fato, na frente da casa do vizinho. Eles estavam na casa dela. Ela diminuiu o passo e depois parou. 

Seu primeiro pensamento foi que alguém estava ferido. Talvez sua mãe tivesse escorregado das escadas ou se cortado. Ela sempre reagia exageradamente quando se machucava e achava que precisava de pontos, gesso ou algo assim. Mas as luzes piscantes não eram de uma ambulância, eram de carros de polícia. Mas não carros regulares de polícia. Eram carros pretos sem identificação. Federais. 

Carmina escondeu-se atrás de uma das grandes árvores e observou, seu estômago e peito estavam formigando. Homens de terno preto entravam e saíam da casa. Dois deles saíram com o pai dela entre eles, com as mãos algemadas atrás das costas. Eles o colocaram em uma das viaturas. Então, alguns minutos depois, outros saíram de dentro da casa com a mãe dela. Os longos cabelos loiros de Esther Kavalcanti voavam levemente para trás com a brisa. Mesmo à distância, Carmina não conseguia deixar de admirar e invejar a beleza da mãe. Seu próprio cabelo era bastante escuro. Sua pele era mais escura e seus traços faciais mais redondos e não tão finos. Esther sempre parecia impecavelmente arrumada, sua maquiagem perfeita, seus cabelos brilhantes, até mesmo quando ela estava realizando suas pinturas logo pela manhã, tentando pegar a luz da manhã. 

Esther estava aborrecida. Ela tentava se afastar dos dois agentes que a seguravam. Esther odiava as pessoas em seu espaço pessoal. Ela não gostava que a sua rotina fosse quebrada. Carmina engoliu em seco, desejando poder simplesmente ignorar o sentimento de apreensão. Às vezes, ela acordava de manhã cedo com uma sensação inexplicável de desgraça iminente, e ela dizia a si mesma como estava sendo boba. Ela não tinha motivos para se preocupar. Carmina tinha uma vida boa e nada de horrível lhe ia acontecer. Mas, desta vez, ao ver seus pais sendo escoltados para fora de casa e colocados nas viaturas à espera, ela não conseguia encontrar palavras reconfortantes para dizer a si mesma. 

Talvez fosse tudo um mero engano. Talvez fosse apenas algum tipo de erro administrativo. Ou erro de identidade. O pai dela muitas vezes a avisou sobre como era fácil para alguém roubar a sua identidade, fazer coisas em seu nome e estragar o seu crédito e a sua reputação. Aquilo tinha de ser o que havia acontecido. Ou foi um erro ou alguém roubou a identidade de seus pais. Eles levariam Júlio e Esther Kavalcanti até a delegacia de polícia ou qualquer prédio onde esses agentes estivessem trabalhando, e eles se sentariam para conversar, e descobririam que tudo não passava de um engano. Era tudo um grande mal-entendido.

Um onda de tontura passou por Carmina, e ela se afastou da cena por um momento, apoiando-se contra a árvore e fechando os olhos. Ela respirou fundo. Calma. Ela tinha de manter a calma. Pense um pouco. O que seu pai lhe diria para fazer? Eles o algemaram e o colocaram na viatura, prenderam-no. Desta vez, ele não conseguia explica para ela, não podia dizer-lhe o que fazer. Ela teve que pensar em tudo o que ele havia te ensinado e descobrir por conta própria. 

Ela olhou para trás ao redor da árvore em direção à casa. Com ambos os pais em carros separados, os federais aparentemente não estavam perdendo tempo movendo o processo. Com pelo menos meia dúzia de agentes ainda dentro da casa, os dois carros se afastaram da casa e seguiram de volta pela longa e sinuosa entrada em direção a Carmina. Ela se escondeu atrás da árvore da melhor maneira que pôde e os observou passar por ela. Ela sabia que não deveria espreitar para vê-los passar. Mas ela tinha de ver. Ela tinha de saber tudo o que podia sobre o que estava acontecendo à sua família. 

O carro preto com Esther passou primeiro. As luzes vermelhas e azuis piscavam. Havia um agente conduzindo e outro estava no banco do passageiro. A cabeça de Esther estava inclinada. Carmina não estava perto o suficiente para ver lágrimas, mas tinha certeza de que estavam lá. A correr pelo lindo rosto da Esther. Elas não manchariam sua maquiagem à prova de água. Ela ficaria perfeita, como sempre. Esther não olhou pela janela. Não viu sua filha se escondendo atrás da árvore, imaginando o que estava acontecendo e o que ela deveria fazer. 

O carro com Júlio seguiu logo atrás. Sua cabeça não estava baixa como a da mãe dela, mas erguida, girando para cá e para lá, observando tudo. Seus olhos escuros brilhavam debaixo de sobrancelhas negras e espessas, capturando cada pedaço de informação sobre o ambiente. Era como se estivesse pronto para qualquer oportunidade de fuga que surgisse. A cabeça de Júlio parou de se mover momentaneamente quando o carro passou pela árvore. Ele não fez nenhum gesto indicando que a tinha visto, adicionando essa nova informação a todo o resto. Não fez nada que atraísse a atenção dos agentes para Carmina. Não tentou fazer gestos labiais ou fazer qualquer gesticulação para ela. Ele apenas a observou pelos poucos segundos que o carro levou para passar pela árvore, então sua cabeça começou a girar novamente. 

Carmina esperou até que os carros tivessem saído da longa entrada, passando pelos portões altos, desaparecendo de sua vista na rua residencial. Ela olhou em direção a casa para se certificar de que ninguém a veria, e então começou a voltar pelo caminho da entrada da mesma forma que tinha vindo, desta vez mantendo-se próxima das árvores, escondendo-se atrás delas ou em suas sombras. Ela sabia o que tinha de fazer. Sabia o que seu pai lhe diria. Ele não queria que ela ficasse por perto para ser presa. Ele não queria que ela estivesse em perigo. Ela tinha de desaparecer antes de começarem a procurá-la. Talvez já estejam em sua cola.

Nilo Corveira parou do lado de fora da casa para olhar pela longa entrada e garantir que Júlio e Esther Kavalcanti estivessem fora do caminho. Ele não seria o responsável por fazer os inquéritos iniciais, ele tinha que ficar na casa e supervisionar a busca e apreensão de qualquer coisa suspeita. Ele tinha que garantir que tudo fosse feito conforme as regras e que a cadeia de evidências fosse preservada, para que tudo pudesse ser usado em tribunal quando chegasse o momento. 

A folhagem ao redor da pista era exuberante e espessa. Era um lugar bonito. Havia poucas pessoas que recusariam viver num casarão como a Mansão Kavalcanti. Era luxuosa e impecavelmente bem cuidada. Era tarefa do Nilo descobrir todos os seus segredos. Considerando todo o trabalho que tinha ido para a investigação até agora, Nilo suspeitou que seria um processo longo. Havia muitos segredos na Mansão Kavalcanti. 

Outros agentes haviam começado o processo de empacotar os arquivos do escritório de Júlio e estavam carregando-os nos porta-malas dos veículos à espera. Nilo também encomendou uma van, depois de dar uma olhada no escritório do sujeito. Eles não estavam falando apenas de algumas gavetas de arquivo em uma mesa. Júlio tinha várias fileiras de arquivos laterais, todos cuidadosamente catalogados e rotulados. Seriam necessárias semanas de trabalho para passar por todos eles. 

Precisariam de uma segunda van só para as telas para pintura da Esther. Os Kavalcanti não os armazenavam todos na Mansão Kavalcanti, a maioria deles estaria nas galerias. Mas ainda havia muitos deles no estúdio dela. Nilo reconheceu cópias de algumas das pinturas mais famosas, mas a maioria delas era obscura demais para ele saber. Ele não era especialista em arte. Na maior parte do tempo, o melhor que ele podia fazer era discernir quais das pinturas eram originais de Esther Kavalcanti e quais eram cópias do trabalho de outra pessoa. O trabalho original de Esther era leve e arejado, muitas cores suaves, vento e água, animais fantásticos e elfos com as feições de sua filha. Suas cópias percorriam toda a gama da história da arte. Ela parecia igualmente capaz de reproduzir uma peça renascentista, uma surrealista e uma obra moderna. Seria necessário um perito para distinguir as reproduções dos originais, e Nilo não era um perito em arte. 

Maicon largou uma pilha de caixas e enxugou a testa com a parte de trás do braço. “E o quarto da garota?”

“Hein? Ah, sim. Bem, examine cuidadosamente, mas com respeito. Deixe as coisas onde estão, a menos que algo seja claramente suspeito.”

“O computador dela?”

“É melhor pegá-lo.”

“Há obras de arte no quarto dela também.”

“Pegue. Certifique-se de que está rotulado como vindo do quarto dela e não do estúdio.”

Maicon acenou com a cabeça. “Ok. Alguém vai à escola buscá-la?”

Nilo olhou para seu relógio. “Matilde. Mas ela não sai até as três e meia, então ainda temos algumas horas.

“Pobre criança. Isso vai devastá-la.”

Nilo sentiu uma pontada de culpa. Mas eles não podiam deixar os criminosos operarem só porque tinham filhos. Não era culpa de Nilo o fato de a família Kavalcanti estar sendo despedaçada. Isso era culpa dos pais. Suas escolhas levaram a isso. Pelo menos ele não teve que tirar criancinhas chorando dos braços da mãe. A adolescente tinha idade suficiente para entender o que estava acontecendo. Com idade suficiente, ela teria apenas alguns anos em um lar adotivo ou com parentes antes de poder viver por conta própria. 

“Ela ficará bem”, ele disse para Maicon. “As crianças são mais duras do que você pensa.”

Maicon deu de ombros e acenou com a cabeça, voltando para a casa para continuar com o trabalho de remover todas as evidências. Nilo esperou até que Maicon estivesse dentro novamente antes de colocar um comprimido Pepto-Bismol na boca, mastigando-o bem antes de engolir e esperando que fizesse efeito.

Assim que Carmina se afastou da casa, ela parou para organizar suas ideias. Ela estava sozinha. Ela não podia contar com a ajuda de ninguém, ia ter de lidar sozinha. E sobre aquelas vezes em que ela secretamente pensava que seus pais a sufocavam, e ela só queria um pouco de liberdade e independência? Bem, esse tempo chegou. E agora não tinha tanta certeza de que estava pronta para isso. 

Ela sentou-se numa grande pedra, sob uma árvore com uma copa larga, verde e farfalhante. Havia um pequeno riacho a seus pés. Fundo o suficiente para esconder alguns peixes ou para molhar os shorts, caso ela decidisse percorrê-los. Se ela estivesse usando short. Carmina abriu o zíper da mochila e lentamente olhou o interior.

Os livros escolares estavam fora. Ela não iria precisar mais deles. Embora o texto sobre design gráfico…ela ainda quisesse mantê-lo. Carmina o abriu. Seu nome estava cuidadosamente escrito em tinta no manuscrito impresso de sua mãe na primeira página. Carmina o arrancou. Ela imaginou que se o arrancasse rapidamente, como um curativo, não machucaria tanto. Detestava rasgar um livro. E esse era um favorito específico. Mas ela não podia manter nada que a identificasse. Ela colocou os livros e a página descartados em um monte arrumado aos seus pés. 

O almoço ainda estava na mochila. Ela se sentiu doente na hora do almoço. Essa era uma refeição a menos para se preocupar, agora que estava sozinha. Ela a colocou ao lado. Empurrando outros itens, ela buscou do fundo da mochila seu kit de emergência.

Júlio sempre insistiu que eles mantivessem kits de emergência com eles o tempo todo. No carro, na mochila da escola de Carmina, na bolsa de Esther. Júlio tinha pequenos kits que cabiam nos bolsos de seu terno. Carmina apertou-o contra o peito, ouvindo suas palavras frequentemente repetidas.

Você nunca sabe quando e onde estará quando uma emergência acontecer. É por isso que você deve estar preparado. Sempre.

Ela lentamente abriu o zíper do topo da mochila. Nada caiu ou saltou para fora. Tudo estava bem organizado. Manta térmica de emergência para reter o calor do corpo. Barras de granola, goma, tempero em tabletes. Corda, fio e um multiferramenta. Alfinetes de segurança. Um minúsculo kit de primeiros socorros. Ela não retirou nada, não querendo arriscar perder nada ou não ser capaz de colocá-los todos de volta corretamente. Ela o fechou novamente e o colocou de volta em sua mochila. Havia outro pacote bem no fundo da mochila. Carmina retirou uma pochete. Dando uma breve olhada ao redor para se certificar de que ainda estava sozinha e inobservada, ela puxou sua blusa e afivelou a pochete, pressionando-a para que ficasse plana e colocando-a no lugar. Ela não a abriu para observar quanto de dinheiro tinha ali dentro. 

Sua carteira continha sua identificação, que ela nunca tinha sido capaz de memorizar, sua provisória, sua identidade escolar e seu cartão de crédito. Isso também teria que ir embora. Ela reabriu o kit de emergência para remover a multiferramenta e a abriu em um grande par de tesouras robustas. Ela cortou os cartões em pequenos pedaços e os enterrou junto com a carteira sob um tronco próximo.

Carmina olhou para seu telefone por um bom momento. Se pelo menos ela pudesse ligar para alguém e dizer o que estava ocorrendo. Mas ela não podia envolver mais ninguém. Não podia confiar em mais ninguém. E quem ela realmente tinha para poder contar algo? Não era como se ela fosse popular ou até mesmo tivesse uma melhor amiga. Sua melhor amiga era sua mãe, e como Esther era tão reclusa, eles não tinham um grande círculo de amigos que saíam juntos para assistir filmes, tomar chá ou fazer compras. Eram apenas Carmina e Esther. E Júlio. E Esther e Júlio não podiam se comunicar com ela agora. 

Carmina jogou o telefone no riacho. Fez um pequeno som de ‘pluft’ e desapareceu. 

Agora ela realmente estava por conta própria.

Nilo olhou para o relógio. Eles já estavam na quarta van, e não havia sinal de que terminariam de limpar as gavetas com os arquivos de Júlio Kavalcanti tão cedo. Sua chefe, Matilde Fonseca, uma mulher negra de baixa estatura, mas resistente como aço, estava saindo de seu carro e se aproximando da mansão. Ela estaria procurando por algum tipo de previsão de quando terminariam com a casa. 

“Estamos trabalhando o mais rápido possível”, disse Nilo, levantando-se. 

Ele só estava sentado na grande escada que levava à porta da frente por um instante. O resto do dia ele estava de pé, e estava realmente sentindo dor neles. Ele aliviou as pernas e os pés com firmeza. 

“Não estou aqui para apressá-lo”, declarou Matilde. “É mais importante ser minucioso e fazer tudo certo do que ser rápido e fazer tudo errado. Vamos pegar tudo o que pudermos.

Nilo concordou com a cabeça. “Tá bom. Então… e aí?”

Ela não precisava verificá-lo no meio de uma investigação. Eles tinham planejado tudo corretamente e ela sabia tudo o que estava acontecendo sem precisar entrar pessoalmente no meio disso. 

Matilde olhou para ele. Ela passou uma mão pelas suas trancinhas e franziu os lábios carnudos. Ela parecia cansada ao redor dos olhos. Como se ela tivesse estado acordada a noite toda antes da operação, revisando os arquivos e garantindo que tudo estivesse em ordem.

“Temos um problema.”

O coração de Nilo acelerou imediatamente, e ele teve que se lembrar de que ‘um problema’ quando estava em deveres reduzidos não era o mesmo que um problema quando estava no campo perseguindo os bandidos. Derrubar criminosos de colarinho-branco como Júlio e Esther Kavalcanti geralmente não envolvia tiroteios ou perseguições em alta velocidade. Foi a primeira vez que Nilo saiu do escritório policial em semanas. 

“O que foi?” ele perguntou.

“É a garota.”

Nilo tentou lembrar dos detalhes que sabia sobre a filha de Júlio e Esther, que havia sido apenas incidental à investigação. “Carmen?” 

“Carmina”, corrigiu Matilde. 

“Carmina. Qual é o problema? Pensei que você fosse buscá-la na escola.”

“Esse é o problema. Ela não está lá.”

Nilo franziu a testa para ela. “Onde ela tá? Gazeando?”

“Aparentemente, ela não estava se sentindo bem e saiu da escola no início da tarde.”

Nilo olhou para os veículos do governo que invadiam a entrada da garagem em frente à mansão. Ele olhou para a estrada que conduz até a casa. Às matas ainda selvagens ao lado da estrada. Ele começou a pensar em possíveis possibilidades em sua mente. 

“Ela pode estar gazeando, saindo com amigos.”

“A escola acha que não.”

“Claro que não, isso sugeriria um problema com o monitoramento da frequência. Por que eles iam pensar o contrário?”

“Aparentemente, ela realmente não tem um grupo de amigos com quem sai. Deixarei que você os contacte sobre os pormenores. Mas, até então… ela não está lá, e também não está aqui.”

“É melhor lançarmos um alerta de pessoa desaparecida.”

“Concordo.”

Nilo olhou para a estrada da garagem novamente e suspirou. “Acho que é melhor eu retirar os rapazes da coleta de arquivos e começar uma busca. Provavelmente ela deva apenas ter saído com um amigo, mas se viesse aqui e observasse intrusos, talvez ficasse assustada.”

Matilde concordou. “Os arquivos terão de esperar. Não queremos que ela fique por aí sozinha quando começar a escurecer.”

Capítulo 2

Deixando os outros agentes para vasculhar os arredores da Mansão Kavalcanti e o bairro próximo, Nilo verificou os detalhes da escola e se dirigiu até lá.

A escola particular de Carmina era convenientemente próxima. Embora ela normalmente pegasse um ônibus de ida e volta, a escola era perto o suficiente para ir caminhando, se você não se importasse com um pouco de esforço. Com o estômago apertado e ligeiramente enjoado, Nilo caminhou pelos corredores vazios e ecoantes até a diretoria da escola e mostrou seu distintivo.

“Agente Nilo Corveira. Estou aqui para falar com a diretora Nogueira.”

Os olhos da recepcionista eram grandes. Ela concordou com a cabeça. “Irei chamá-la para você imediatamente!”

Nilo olhou para a placa de identificação da diretora perto da porta, se lembrando das coisas que aprendeu quando estava na escola. O diretor é gente boa. Ele se perguntou se havia algum aluno que já tivesse considerado o diretor da escola como gente boa. Nilo certamente não tinha, e ele tinha sido um bom aluno. Não era um encrenqueiro. Mas ainda assim problemático.

“Agente Corveira. Entre”

A diretora era bonita, um pouco mais baixa que Nilo, talvez parte hispânica ou indiana, com um bronzeado natural que a fazia brilhar. Ela estava vestida com um blazer conservador e uma saia, mas acabou parecendo na moda nela. Como se fosse uma modelo. Ela o levou para o seu escritório e fez sinal para a cadeira.

“Me chamo Augusta Nogueira. Sente-se, por favor.”

“Obrigado.” Nilo se sentou e flexionou os pés, tentando soltar os músculos e tendões rígidos. Ele esfregou os joelhos e olhou para a diretora Nogueira.

“Então, diga-me o que você sabe sobre Carmina”, mencionou Nilo. “Quando ela saiu, para onde ela poderia ter ido, com quem ela poderia estar se encontrando?”

“Ela saiu pouco depois do almoço. Ela disse que não estava se sentindo muito bem e precisava ir para casa.”

“E um aluno não precisa de permissão ou supervisão, eles podem simplesmente ir embora?”

“Bem… sim… aqui não é uma prisão, Sr. Corveira. Os alunos vêm e vão. Às vezes têm compromissos, ou um período livre, ou… não se sentem bem.”

“Mas ela disse a alguém que não estava se sentindo bem e precisaria ir para casa?”

“Sim. A Carmina é boa em nos informar se vai para casa. Algumas crianças simplesmente saem, mas ela verifica com a enfermeira ou o escritório antes de sair.”

Nilo anotou isso em seu bloco de notas e olhou para a diretora. Ele não disse nada no início. O silêncio era muitas vezes mais importante do que as perguntas para obter informações das pessoas. A diretora parecia desconfortável. Culpada. 

Ela suspirou profundamente. “Não gosto de falar mal da Carmina. Ela é uma menina adorável…”

Nilo assentiu. “Sim…?”

“Ela costuma ir para casa com… problemas de estômago…, mas nós realmente não poderíamos contrariá-la, sugerir que ela poderia estar fingindo um pouco… seus pais disseram que ela tinha alguns problemas médicos e se ela dissesse que não estava se sentindo bem, ela deveria ter permissão para ir para casa.”

Nilo acenou com a cabeça e inclinou a cadeira ligeiramente para trás sobre duas pernas. “E você acha que talvez ela estivesse aproveitando um pouco da situação?”

“Eu vi aquela garota se alimentando, Sr. Corveira. Não há nada de errado com o estômago dela. E nunca houve atestados médicos ou mesmo anotações de casa dizendo que ela não estava bem. Eu acho que…”, a diretora Nogueira bateu com a caneta na mesa à sua frente. “Eu acho que ela pode ter sido um pouco mimada. Filha única, pais ricos, eles imaginam o pior sempre que ela come demais ou quando é picada por um inseto…”, ela encolheu os ombros expressivamente. “Como eu disse… não gosto de dizer nada negativo sobre Carmina. Acho que é uma boa menina. Ela nunca nos deu problemas. Eu só acho…bem…”

“Que ela pode ser um pouco mimada”, resumiu Nilo. 

“Sim. Não é uma grande falta de caráter nem nada. Apenas… ela é muito próxima da mãe.”

Nilo assentiu, escrevendo mais algumas palavras em seu bloco de anotações. “Obrigado por me informar sobre isso. Então ela saiu um pouco depois do almoço. Não se sentindo  muito sinto bem.”

“Foi o que ela disse”, inseriu a diretora Nogueira.

“Foi o que ela disse,” Nilo repetiu, franzindo a testa. “E ela recebeu permissão para ir para casa.”

“Claro.”

“Alguém se ofereceu para levá-la?”

“Bem… não. Não fazemos isso. Isso atrairia responsabilidade…”

“Mas deixá-la ir para casa sozinha doente, não há responsabilidade.”

A diretora parecia nunca ter pensado nisso antes. Ela franziu a testa. “Se ela estivesse realmente doente, poderia ter ficado na enfermaria. Ela estava bem o suficiente para voltar para casa, como sempre.”

“Mas você não sabe se pode ter ocorrido algo mais grave desta vez. Ela poderia ter desmaiado a caminho de casa… ter ficado desorientada… ou qualquer coisa, na verdade.”

“Bem… suponho”, Nogueira claramente não gostou dessa ideia. “No entanto, eu te disse, ela foi para casa sozinha porque estava sempre doente. Não era nada de novo. Por que ela desmaiaria?”

“Eu não sei. Mas ela não chegou em casa, né?”

A diretora sentou-se lá, franzindo a testa.

“Você não acha que ela poderia sair com um amigo?”, Nilo perguntou.

“Não,” disse Nogueira categoricamente. Ela balançou a cabeça. “Ela não tá com um amigo.”

Nilo esperou novamente, deixando o silêncio se prolongar. Ele flexionou o pé e pressionou os calcanhares, desejando poder tirar os sapatos e esticar e massagear os pés adequadamente. 

“Carmina é uma garota excêntrica. Ela não compartilha muitos interesses com outros estudantes. Ela guarda para si mesma. Talvez se os pais dela a pusessem em atividades extracurriculares, clubes… ela não tem realmente ninguém com quem ela conviva.” E mais ninguém esteve visivelmente ausente esta tarde.”

“Que você notou.”

“Estamos presentes em todas as aulas. Não vi ninguém que estivesse ausente das últimas aulas com quem Carmina tivesse alguma coisa a ver. Ninguém no seu grupo social.”

“Talvez ela tenha um namorado…?”

“Carmina? Ah, não! Nunca a vi sequer olhar para um garoto, muito menos dar as mãos ou conversar no corredor com algum. Ela ainda não… está tão madura assim.”

“Seus amigos podem contar uma história diferente.”

A diretora deu um pequeno encolher de ombros.

“Há mais alguma coisa que devamos saber?” Nilo perguntou. “O que você acha que aconteceu?”

“Não sei… espero que ela não esteja ferida, raptada ou algo assim. Ela é uma garota tão boa. O pai dela é um homem de condições. Talvez ela apenas… não sei… tenha mudado de ideia e decidido ir ao zoológico ou algo assim.”

“Ao zoológico. Bem, espero que não tenha sido nada grave e que ela apareça em casa a qualquer momento. Mas estou preocupado.”

Nogueira acenou com a cabeça. “Posso perguntar… como você está envolvido…? Não parece o caso de uma criança matar aula por uma tarde… não justifica realmente um boletim de desaparecimento. Ainda.”

Nilo não a esclareceu. A notícia estava fadada a ser divulgada pelos jornais matinais, mas ele não seria o responsável por divulgar os detalhes. Ele particularmente não queria que Carmina ouvisse o que estava acontecendo pela videira e fugisse.

“Obrigado pela sua ajuda, Srta. Nogueira. Vou deixar o meu cartão contigo, caso lhe aconteça alguma coisa, ou se ouvir alguma coisa. E eu vou precisar dos nomes de qualquer um dos colegas de classe de Carmina que você acha que pode ser útil…”

Carmina saiu do outro lado da floresta, onde havia um parque público. Ela observava pessoas correndo e andando de bicicleta, passeando com cães, brincando com seus filhos e fazendo piqueniques. Era um dia quente e ensolarado e parecia que todos estavam fora. 

Carmina não sabia o que fazer. Como é que ela devia viver agora? Ela se sentia sem esperança e desamparada. Sua mãe normalmente colocaria o jantar na mesa agora, fazendo perguntas a Carmina sobre como foi a escola hoje. Falando sobre seus últimos desafios em suas pinturas, quais projetos ela estava pensando em fazer. Júlio sentava-se e ouvia. Talvez pegasse seu caderno de anotações para anotar um lembrete para si mesmo. Ela lhe perguntou uma vez o que os códigos em seu caderno significavam, mas ele apenas balançou a cabeça, sua boca fina ficando ainda mais fina e apontando para baixo. 

“Às vezes você precisa manter registros, anotar as coisas”, explicou ele. “Mas você nunca deve escrevê-los de uma forma que outra pessoa possa entendê-los.”

Carmina olhou para o seu bloco de notas aberto. Ela tentou lê-lo ao contrário para ver se fazia sentido dessa forma. Mas ainda parecia uma cifra. Nem a mãe dela conseguia ler. Júlio era o único. 

“Eu hoje tive aula de design gráfico”, sussurrou Carmina para si mesma, como se estivesse à mesa, contando para sua mãe sobre o dia, como deveria ser. “O Sr. Barbosa gostou da minha proposta de projeto. Ele disse que eu deveria me concentrar na mudança social. O que vocês acham?”

Ninguém podia ouvi-la sussurrando. Ela não conseguia nem ouvir a si mesma devido ao barulho do parque ao seu redor. Ela não queria que alguém pensasse que ela era uma maluca e tentasse levá-la ao hospício ou pior. Mas foi reconfortante, algo para ligá-la de volta à sua família. Estar longe deles fez com que ela se sentisse invisível. Inexistente. 

O que diria a mãe dela? A mudança social não era algo que estava no topo da sua lista de afazeres. No que diz respeito ao Sr. Barbosa, a mudança social era a vocação mais elevada e nobre. A razão pela qual você faz alguma coisa. Mas para Esther, a vocação mais elevada e nobre era a arte. Arte por si só. Você não desenha, pinta ou projeta para influenciar o rumo da vida de alguém, suas decisões. Você pinta para lhes dar beleza, equilíbrio ou cor. Para Esther, a arte verdadeira sempre foi arte, não um veículo para mudança social ou influência. 

Havia um grande grupo no parque celebrando. Talvez uma festa de aniversário. Havia muitas crianças e alguns cães. Adultos fritando hambúrgueres e cachorros-quentes em hibachis, havia melancia cortada e meia dúzia de diferentes tipos de sobremesas. 

Carmina não se sentia bem na hora do almoço, mas o cheiro salgado dos cachorros-quentes que cozinhavam fazia seu estômago roncar. Ela tinha comida suficiente para pelo menos duas refeições. Ela podia comer sua merenda escolar no jantar e ela tinha barras de granola e outros alimentos em seu kit de emergência. Depois disso, ela teria que começar a comprar ou procurar comida. Ou então, ela poderia tentar racionar ainda mais a comida que já tinha. Carmina passou por uma das mesas de piquenique à beira da festa. Uma criança tinha deixado um cachorro-quente comido pela metade para trás enquanto ele ia brincar com os cães ou frisbees, ou talvez brincar nos balanços. Carmina deu uma rápida olhada ao seu redor e pegou o prato de papel. Ela se afastou, virou as costas para o grupo, e comeu o cachorro-quente em três mordidas a caminho da lixeira, onde ela jogou o prato fora. Ela vagou pelo parque, com o objetivo de caminhar pelas mesas do outro lado, e talvez pegar uma fatia de melancia e um brownie de sobremesa. 

“Ei!”

Carmina olhou rapidamente para uma mulher de cabelos escuros que gritou. Ela deu um passo para trás, se preparando para correr. 

“Você quer um pouco?” a mulher questionou, com um sorriso e sobrancelhas levantadas. “Há bastante aqui, se você tiver com fome.”

Carmina olhou para a fatia e depois para a mulher, desconfiada. “Eu não deveria…”

“Por que não? Tá aqui. Metade disso vai acabar no lixo. Se estiver com fome, pegue um pouco.”

“Vou jantar em casa”, disse Carmina. “Minha mãe não gostaria que eu perdesse meu apetite.”

“Oh. Bem, você que sabe. A maioria dos adolescentes que eu conheço poderia comer uma refeição completa e ainda assim ir pra casa e comer outra.

Ela desviou o olhar de Carmina para colocar alguns pedaços em um prato para uma criança choramingando. Carmina a observou, perguntando a si mesma se era seguro. Ela deveria pegar comida enquanto tivesse oportunidade, desde que não a denunciassem ou chamassem a polícia. Ela não parecia uma desabrigada ou algo do tipo. Apenas uma garota passeando pelo parque. A mulher não tinha como saber que Carmina havia perdido sua família e sua casa. Ela estava apenas sendo simpática. 

“Sirva-se”, disse a mulher, dando-lhe mais um sorriso e levantando a sobrancelha em convite.

A Carmina decidiu que era melhor arriscar enquanto podia. Era provavelmente a última vez que a mulher ia oferecer. “Hum, ok. Se você realmente não se importa.”

“Não, de modo algum. Nós temos bastante. Você sabe como é nessas reuniões familiares. Todo mundo traz alguma coisa e ninguém quer levar tudo isso de volta pra casa e colocar na geladeira. Eles têm que dirigir por um longo caminho pra chegar em casa. Então tudo acaba sendo desperdiçado.”

Carmina pegou um prato e começou preenchê-lo. “Bem, isso é muito gentil da sua parte”, disse ela. 

Não que ela soubesse alguma coisa sobre reuniões familiares. Sua família era composta por três pessoas. Ela tinha encontrado os avós de sua mãe uma ou duas vezes, mas eles eram pessoas distantes e desinteressadas, não como os avós que você via na TV, se você assistisse a esse tipo de programa. Os pais do pai dela já haviam falecido. Ela não se lembrava de tê-los conhecido algum dia. A ideia de todas essas pessoas pertencerem a apenas uma família era incompreensível.

“Obrigada”, disse ela à mulher.

“Obrigada a você por nos ajudar a nos livrar de algumas dessas coisas!”

Carmina caminhou rapidamente para o outro lado do parque, sentou-se em um banco desocupado e retirou as guloseimas, fora da vista da mulher e de sua família. Com o estômago cheio e satisfeito, ela jogou fora o segundo prato e seguiu em frente. Seu peito ardia um pouco, deixando-a saber que ela encheu o estômago demais. Esther teria repreendido ela por ter comido tão rápido e em grande quantidade. Mas ela tinha que comer enquanto podia. Isso era o que Júlio teria dito.

Nilo voltou para sua mesa para largar a papelada e tirar os sapatos, que estavam o deixando louco. Agnese lhe deu um pequeno aceno e um sorriso, e ele foi até a mesa dela.

“Você tem um minutinho?”

“Pra você? Sempre”, ela sorriu hesitantemente, puxando seus longos cabelos castanhos para trás da cabeça, formando um rabo de cavalo por um momento e depois soltando-os para que caíssem pelas costas. Alguns fios soltos ainda caíam ao redor do rosto dela, se recusando a ficarem contidos. 

“Eu tenho algumas crianças da escola com quem preciso falar para que me respondam algumas perguntas. Não tenho tempo para ir às casas deles, por isso preciso que os pais os tragam aqui. Tudo bem?”

Agnese franziu os lábios e não parecia muito animada com isso. Ela preferia rastrear as pessoas pelo computador, estalqueá-las on-line e dar a ele todos os detalhes para persegui-las pessoalmente. Falar com elas ao telefone estava bem no final da lista de trabalhos que ela preferia fazer. 

“Desculpe”, disse Nilo, balançando a cabeça. “Eu realmente preciso que você fale com elas. Traga-os pra mim, tudo bem?”

“Claro, chefe”, ela concordou.

Mas seu sorriso desapareceu assim que ela olhou para os nomes na anotação e se preparou para fazer o que ele havia pedido. Nilo deu outro pequeno encolher de ombros e se dirigiu pelo corredor para os elevadores. Os Kavalcanti estavam no quarto andar, e estava na hora dele começar a trabalhar e descobrir o que podia sobre eles. 

Esther Kavalcanti provavelmente era a sua melhor opção. Ele suspeitava, a partir de sua investigação, que Júlio seria um osso duro de roer. Nilo ficou de pé e olhou para Esther através do espelho de observação por alguns minutos antes de entrar. Ele sempre pensou em ‘Esther’ como um nome para uma mulher de cabelos escuros. Mechas de cabelo preto enroladas ao redor de seu rosto. Mas Esther Kavalcanti era uma bela loira. Cabelos longos e dourados corriam ao redor de seu rosto, caindo no lugar toda vez que ela se movia como se tivesse sido projetada por um diretor de Hollywood. Era mais escuro em direção às raízes, mas parecia ser natural, não descolorado. Ela tinha um rosto bonito e bem caracterizado. Mas naquele momento ela estava muito aborrecida. Eles tentaram vários interrogadores diferentes, mas ninguém parecia ser capaz de se conectar com ela para obter qualquer informação dela. Ela apenas continuava reclamando e colocando o rosto nas mãos e implorando que a deixassem ir para casa.

Nilo fez uma cara carrancuda e entrou para vê-la. 

Esther olhou para ele quando ele entrou, e talvez estivesse esperançosa de ver um rosto com o qual ela ainda não havia lidado antes. “Você que está no comando?” ela questionou. “Você pode dizer a eles pra me deixarem ir pra casa?”

“Temo que você não vá pra casa, Esther”, disse Nilo o mais gentilmente possível e se sentou em frente a ela. “Mas agora, eu preciso que você se concentre em sua filha.”

“Carmina?” Esther parecia confusa. “Você também a prendeu? Onde está ela?”

“Não a prendemos.”

“Ela tá em casa? Ela deve estar assustada por estar sozinha. Carmina nunca gosta de ficar sozinha.”

“Carmina não voltou da escola hoje.”

Esther puxou as mãos para trás do rosto e bateu os dedos inquietamente na mesa. 

“Eu perdi o sol da tarde hoje”, disse ela. “Não consigo completar o Van Gough sem o sol da tarde.”

Nilo a encarou. Ele esperou que ela olhasse para ele novamente. Ela olhou rapidamente para o rosto dele, e os olhos dela se desviaram.

“Carmina não voltou da escola hoje,” repetiu Nilo. “Ela não chegou em casa. Ela tinha planejado ir à casa de um amigo ou algo do tipo? Sabe pra onde ela pretendia ir?”

“Não”, Esther balançou a cabeça. “Carmina sempre volta pra casa. Ela não vai à casa dos amigos. Ela chega em casa, e depois de terminar o meu projeto da tarde, faço um jantar e conversamos.” Ela tamborilou os dedos novamente e balançou a cabeça. “Mas eu não peguei a luz da tarde hoje.”

Nilo pensou a princípio que o estúdio do terceiro andar era pretensioso; todas aquelas janelas enormes, mirando em todas as direções. Parecia que era apenas um espetáculo. Mas cada janela captava a melhor luz em um horário diferente do dia, e em cada uma delas havia um projeto diferente, ou vários projetos, e Esther se alternava entre eles ao longo do dia.

“Sra. Kavalcanti.”

Ela esfregou as têmporas, sem olhar para ele.

“Sra. Kavalcanti, você pode se concentrar em mim aqui? Isto é importante.”

Ela olhou para o rosto dele, com linhas de preocupação surgindo acima de seu nariz.

“Carmina está desaparecida. Você consegue pensar onde ela poderia ir, se não fosse pra casa?”

“Não. Ela sempre vai pra casa.” 

“Por favor, pense um pouco.”

Ela não disse nada. Nilo esperou. “Você deveria perguntar a Júlio”, disse Esther decididamente.

“Você não tem ideia de onde sua filha poderia ter ido?”

“Ela vai voltar pra casa”, insistiu Esther.

“Ela não voltou pra casa. Ela está desaparecida. Precisamos encontrá-la.”

“Você poderia me dar um papel?”, Esther sugeriu. “E alguns lápis? Preciso fazer algo com as mãos.”

“Veremos”, disse Nilo.

Ela fez uma careta e cobriu o rosto com as mãos novamente. “Não consigo me concentrar em nada.”

“Se eu lhe der algo pra desenhar, você pode me dizer para onde Carmina poderia ter ido?”

Ela começou a balançar um pouco para frente e para trás, gemendo.

“Sra. Kavalcanti.”

Ela não voltou a olhar para ele. Nilo se afastou da mesa. Ele saiu da sala de interrogatório e certificou-se de que a porta se fechasse com segurança atrás dele. Ele desceu o corredor para a sala de interrogatório de Júlio Kavalcanti. Pelas respostas rosnadas de Júlio, Matilde não estava indo muito bem em estabelecer um relacionamento. Ele abriu a porta e ergueu as sobrancelhas para ela. Ela se levantou e saiu, fechando a porta atrás dela e se encostando nela. 

“Prazer em vê-lo, agente Corveira.” Ela esfregou a testa em um gesto de fadiga. “Como as coisas estão progredindo?”

“Não muito bem, no que diz respeito a trazer Carmina de volta. Gostaria de fazer algumas perguntas ao Júlio.”

“Ele não é muito cooperativo.”

“Espero que ele seja mais cooperativo no que diz respeito à segurança da filha.”

Ela assentiu. “Sim. Vá em frente. Gostaria muito de poder dizer, no fim das contas, que a garota está segura.

“Ok. Poderia me fazer um favor enquanto falo com ele?”

“Do que você precisa?”

“A Sra. Kavalcanti precisa de papel e lápis.”

Matilde franziu para ele. “Ela vai assinar uma declaração?”

“Não… ainda estou tentando entender ela melhor…, mas acredito que ela pode nos ajudar mais com um lápis na mão.”

“Ok. Desde que ela prometa não os usar como armas.”

Nilo entrou na sala de interrogatório. Júlio olhou para ele com olhar de desconfiança. Suas sobrancelhas pretas e espessas se aproximaram. “Você estava na minha casa esta manhã”, ele acusou.

Nilo assentiu e se sentou. “Me chamo agente Nilo Corveira.”

Júlio cruzou os braços sobre o peito. Um sinal de que ele não cooperaria.

“Sr. Kavalcanti, não estou aqui para discutir as acusações com você neste momento. Temos um problema mais urgente.”

“Eu não me importo com o seu problema.”

“Acho que você se importará. Estamos tentando encontrar a sua filha.”

“Você deixe minha filha fora disso!”

Não foi a reação que Nilo esperava. Ele pestanejou. “Acredito que você não tenha entendido. “Carmina não voltou da escola hoje.” Não sabemos onde ela está. A menos que você saiba pra onde ela foi, ela poderia estar em perigo.”

Você não entende”, respondeu Júlio. “Eu não quero você perto da minha filha.”

Nilo estudou os olhos de Júlio, tentando entendê-lo. Ele nunca tinha visto nenhum pai responder como o Sr. e a Sra. Kavalcanti reagiram ao desaparecimento de Carmina. “Isso significa que você sabe onde Carmina tá? Sabe se ela está segura?”

Júlio balançou a cabeça. “Não, eu não sei onde ela tá. Mas ela é uma garota esperta. Ela está bem.”

“Bem, vamos mantê-la assim então. Para onde você acha que ela iria? Você acha que ela está fugindo com medo ou que está em algum lugar com um amigo?”

O homem apenas olhou para ele e não disse nada. 

“Sua esposa diz que não acha que Carmina estaria com um amigo. A escola parece pensar o mesmo.”

“Ela não sai com amigos.”

“Então sua filha está fugindo, sozinha, e você não se importa? Nós precisamos encontrá-la. Mantê-la segura.”

Júlio cerrou a mandíbula. “Acho que terminamos aqui. Você pode ficar longe da minha filha. Deixa-a em paz.”

Nilo balançou a cabeça em descrença. Mas, sentindo que Júlio não tinha intenção de continuar essa linha de discussão, ele abandonou o tópico e mudou de direção.

“Fale-me sobre sua mulher”, sugeriu. “Ela parece… um pouco ansiosa. Ela está tomando algum tipo de medicação…?”

Júlio considerou essa nova questão. Ele tinha grandes olheiras sob os olhos, o que dava a impressão de que ele não tinha dormido por um bom tempo. Ele parecia estar cronicamente com falta de sono e nervoso. “Esther é uma artista”, disse ele. “Os artistas são frequentemente… excêntricos. Inconvencional.”

Nilo assentiu estimulantemente.

“Ela é uma artista”, repetiu Júlio, com um encolher de ombros pesado.

“Ela está tomando algum medicamento? Sob os cuidados de um médico?”

A questão só precisava de um simples sim ou não, mas Júlio, aparentemente, precisava pensar sobre isso. Eventualmente, ele balançou a cabeça. “Não, ela não está.”

Nilo estudou Júlio, avaliando-o, tentando entrar em sua mente. Ele sabia muito sobre o homem como resultado de sua investigação que durou meses, mas ainda tinha dificuldade em entender o que motivava Júlio Kavalcanti. Pelas indicações, ele era um empresário brilhante, mas no que diz respeito a entender sua personalidade, ele era quase tão difícil de compreender quanto sua esposa reclusa. 

Júlio olhou para ele com olhos críticos. Talvez ele também estivesse avaliando Nilo; esse inimigo que permaneceu invisível nos últimos meses, descobrindo seus segredos, estalqueando-o das sombras. 

“Tenho a sensação de que você é um pouco inconvencional”, disse Nilo.

Júlio lhe deu um sorriso sombrio que lembrou Nilo de um tubarão.

Quando Nilo saiu da sala de interrogatório, Matilde o encontrou no corredor. Ela balançou a cabeça, fazendo suas trancinhas saltarem. “Inconvencional é a palavra certa,” concordou ela. “Ambos.”

Nilo teve que concordar. “Eles certamente estão desafiando todas as minhas capacidades.”

“Você ouviu o que sua equipe descobriu na mansão desde que você saiu?”

Nilo levantou as sobrancelhas. “Eles encontraram a garota?”

“Não. E temos outra equipe cuidando dessa busca, então seus rapazes estão de volta para limpar as evidências.”

“Ok. Então, o que encontraram?”

“Eles terminaram de carregar os arquivos. Então eles começaram uma busca mais intensiva do resto da casa, verificando se há cofres ou outros esconderijos.”

“Encontraram algum?”

Ela ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça. “A casa inteira tá cheia de esconderijos! Eles encontraram cofres, algumas quartos do pânico, suprimentos de alimentos armazenados e equipamentos de sobrevivência… esse cara é um verdadeiro fanático. Teorias da conspiração, o pacote completo.”

Nilo deixou isso ser absorvido por um momento. Gradualmente começou a fazer sentido. Os arquivos codificados. A falta de informação pública sobre Júlio. A falta de estrutura social em torno de Esther e Carmina. Júlio pensou que havia uma conspiração contra ele. Ele estava protegendo todos eles.

“Eu vou ter que pensar sobre isso”, disse ele a Matilde. “Isso está ficando complicado.”

“Bem-vindo ao meu mundo.”

“E nenhum progresso na busca pela garota?”

“Ainda não. Vamos ter que cancelar por hoje à noite. Você deixa passar coisas no escuro.”

“Aham. Só espero que… tenham um plano de fuga. Que eles tenham organizado pra que ela fosse pra casa de alguém se algo acontecesse com eles. Mesmo que possa ser mais difícil localizá-la se ela tivesse alguém em quem pudesse contar pra obter ajuda… só espero que ela esteja segura, e não sozinha lá fora.”

“A mãe não ajudou em nada?”

“Vou tentar novamente. Ela obteve os lápis?”

Matilde acenou com a cabeça. “Ela tá fazendo arte.”

Nilo deu um passo em direção à outra sala de interrogatório e Matilde colocou uma mão restritiva em seu braço. Ele parou e olhou para ela. “Você tem certeza de que Carmina fugiu? Não acha que houve um acidente, ou um sequestro…?”

“Olhando para a linha do tempo… se ela saiu da escola quando dizem que saiu, então ela provavelmente entrou direto na operação que estava acontecendo na casa. E se ela acredita nas teorias da conspiração de seu pai, nem que seja um pouquinho, ela não vai esperar e fazer perguntas.”

“Não, você tem razão. E para um sequestro acontecer justamente com ela a caminho de casa, é uma coincidência grande demais. É muito mais provável que ela tenha fugido.”

Nilo concordou. 

“Ok. Boa sorte com a mãe.”

Nilo respirou fundo antes de voltar para a sala de interrogatório de Esther. Ele pôde ver pela pequena janela que ela estava inclinada sobre os papéis que lhe haviam sido fornecidos, profundamente concentrada. Ele entrou e olhou para o desenho em que ela estava trabalhando. 

No curto espaço de tempo desde que lhe tinham sido dados materiais de desenho, ela tinha esboçado uma imagem de Carmina. Talvez um pouco mais jovem do que a da vida real. Com orelhas de fada e uma tiara de joias. Nilo ficou olhando por cima do ombro de Esther. Na foto, Carmina estava em uma floresta, envolta nas folhas exuberantes das árvores e flores. Havia outros animais escondidos na folhagem. Um veado. Um esquilo. E no canto, um lobo magro e escuro. 

“Você sabia que não está usando nenhum sapatos?” Esther questionou, sem olhar para cima.

“Uh, não. Não estou. Como você sabia? Você nem sequer verificou.”

“Todo mundo faz barulho quando anda.”

“Bem, espero não ter te assustado, entrando tão silenciosamente.”

Ela olhou para ele brevemente. “Não me assustou.”

O rosto dela estava muito mais relaxado agora. A arte era definitivamente sua droga de escolha. Nilo se sentou à mesa, olhando para a foto. “É a Carmina?”

“Sim.”

“Carmina gosta da floresta?”

“Ela é uma elfa da floresta. É claro que ela gosta.”

“Mas me refiro na vida real. Quando ela é uma menina, não uma elfa.”

“Bem…”, Esther parou de falar. “Ela gosta que eu a desenhe na floresta.”

“Então ela realmente não gosta de estar na floresta na vida real?”

“Sim…, mas ela tem escola e seus projetos. Ela não passa muito tempo fora.”

“Sim. É assim que as crianças são hoje em dia, não é? Muito tempo na frente da tela. Ela tem um lugar favorito para ir na floresta quando sai? Uma casa na árvore na propriedade ou um lago favorito no parque, ou algo assim?”

“Eu não sei. Não saio muito.”

Nilo a observou escurecer o sombreamento do lobo.

“Você me disse que ela tá desaparecida?” Esther questionou, olhando para cima de seu desenho novamente, suas sobrancelhas se apertando uma na direção da outra.

“Sim. E tá escuro lá fora. Precisamos encontrá-la para mantê-la segura.”

Ela voltou a sombrear o lobo.

“O lobo é perigoso?” Nilo perguntou.

“Oh, sim.”

“Não sabemos que tipo de perigos Carmina pode estar enfrentando de verdade. Nós precisamos saber onde encontrá-la.”

“Júlio não sabia?”. Estava finalmente começando a soar como uma conversa real.

“Não. Ele disse que não. Mas ele não a conhece como você, conhece?”

Esther parou por um momento, depois começou a retocar as joias na tiara da elfa Carmina. “Eu sempre quis uma garotinha. Carmina foi um sonho tornado realidade.”

“Aposto que você faz muitas coisas com ela.”

“Ela está fazendo design na escola.”

“Vocês desenham juntas?”

“Claro que sim. Eu a ensinei a colorir com giz de cera desde muito pequena.”

“O que ela gosta de desenhar?”

“Ela é boa em feições. Esboçar uma imagem. Ela não desenha muita fantasia. Ela faz coisas mais… comerciais.”

“Você também sabe esboçar uma boa imagem”, disse Nilo, olhando para a elfa. 

Esther inclinou a cabeça, olhando para o desenho criticamente. “É tecnicamente perfeito. Mas não tem tanto… apelo emocional.”

“Você disse que Carmina faz mais trabalhos comerciais. Isso significa que está vendendo o trabalho dela?”

Ele observou Esther adicionar meticulosamente folhas e grama ao desenho.

“Anúncios, trabalho freelancer, murais comunitários. Muito… comerciais.”

“Eu imagino que você não aprova isso. Mas você não vende seu trabalho? As suas cópias não trazem um bom dinheiro?”

“Júlio que cuida disso”, disse Esther, acenando com a mão livre. “Mas elas não são apenas para vender algo. Elas são para pessoas que gostam de grandes obras de arte, que as querem em sua própria casa.”

“Ah, entendo. Anúncios vendem um produto que não é a arte. A arte é apenas o meio.”

Ela levantou a cabeça e olhou para ele, levantando uma sobrancelha. “Sim”, ela concordou.

Nilo observou seu desenho, ponderando sobre o que sabia sobre a família até agora. “Você tem algum amigo ou parente que Carmina possa pedir ajuda?”

“Eu tenho pais, mas ela não iria lá. Ela não iria até ninguém em busca de ajuda. Júlio diz…” Ela parou de falar. Ela sombreou a área ao redor do lobo, fazendo parecer que estava exalando escuridão.

“O que Júlio diz?” Nilo perguntou finalmente, quebrando o silêncio.

Ela balançou a cabeça.

“O que ele diria para a Carmina fazer, caso ele estivesse com ela agora? Ele não diria para ela ir para a casa de alguém?”

“Não.”

“O que ele diria a ela?”

“Você deveria perguntar a ele.”

“Ele diria pra ela ir a um determinado lugar? Elaboraria um plano para encontrá-la em um lugar seguro?”

“Não. Acho que não.”

“Como ele a manteria segura, então? Ele ama a Carmina, não é? Como é que ele a manteria a salvo?”

Ela não respondeu e não olhou para ele. Nilo tocou o lobo em apelo. “Você pode ver o perigo em que ela está. Como vamos ajudá-la?”

“Não toque no papel!” Esther gritou, afastando-o dele. “Os óleos dos seus dedos vão arruinar a imagem! Jamais toque nela!”

Seu rosto mudou de uma calma pacífica enquanto ela trabalhava na imagem para raiva. O coração de Nilo acelerou, apesar de ela não ser uma ameaça física para ele. Sua reação foi tão inesperada que ele ficou espantado, envergonhado com o que havia feito.

“Me desculpe. Sinto muito, não era minha intenção prejudicar o seu desenho. Nunca imaginei.”

“Você nunca deve tocar. Nunca.”

“Ok. Eu entendo.”

Ela o encarou mais uma vez e depois voltou a trabalhar no desenho, posicionando o papel e ela mesma de modo que seu corpo ficasse entre Nilo e o desenho. Nilo observou-a, esperando enquanto seu corpo começava a relaxar novamente, e ela ficava distraída em seu trabalho. 

“Onde você acha que Carmina vai dormir esta noite?”

Demorou um tempo para que ela respondesse, mas Nilo estava começando a sentir seu ritmo e esperou pacientemente por sua resposta.

“Você deveria verificar a cama dela”, disse Esther inocentemente. “Ou talvez ela esteja em uma das salas seguras.”

Nilo suspirou. Ele recostou-se na cadeira e fechou os olhos, massageando a ponte do nariz.

Carmina estava caminhando a bastante tempo. Ela sabia que precisava encontrar algum lugar para se acomodar para a noite. Esta noite seria a sua primeira noite nas ruas. Mas certamente não a última. Ela precisaria encontrar um lugar seguro.

“Há segurança nos números”, Júlio disse a ela muitas vezes no passado. “Se você não quer ser vista, não fique sozinha.”

E especialmente uma jovem. As pessoas iriam notá-la, iriam mirá-la se ela estivesse sozinha. Mas ela não tinha certeza onde os desabrigados se reuniam. Ela ouviu dizer que eles dormiam debaixo de pontes. Mas que pontes? Onde? Ela particularmente permaneceu na área verde durante a tarde e noite, e viu algumas pessoas em situação de rua, mas estavam todas sozinhas, não estavam juntas para se proteger. Carmina suspirou e se dirigiu para o rio. Havia muitos caminhos ao longo do rio, e ela mantinha os olhos bem abertos, procurando por pontes ou outras áreas que pudessem parecer promissoras. Pareciam ser poucas e distantes entre si. 

Eventualmente, ela parou. Ela encontrou uma ponte que parecia promissora, com muito espaço embaixo, bem protegida no caso de começar a chover. Mas não havia mais ninguém lá. 

Seus pés doíam ao caminhar. Seu estômago também doía. Carmina não estava apenas cansada após o longo dia, ela estava exausta. Ela não aguentaria ir muito mais longe, e provavelmente seria mais alguns quilômetros até a próxima ponte, que provavelmente estaria tão deserta quanto esta. Ela não conseguiria chegar muito longe, especialmente agora que seu estômago estava se contraindo de dor. Ela precisava se deitar. Ela precisaria tomar uma decisão sobre onde se abrigar para a noite. 

Carmina largou a mochila e examinou o local. Era espaçoso. Silencioso. Seco. A trilha para bicicletas e corrida passava por baixo da ponte, então haveria movimento por ali, mesmo que ninguém mais estivesse dormindo naquele lugar. Ela decidiu que deveria dormir o mais alto possível. Havia uma leve inclinação que ia até a parte inferior da ponte, e se ela dormisse lá em cima, acima das cabeças das pessoas que usavam a trilha, não seria tão perceptível. A maioria das pessoas provavelmente nunca iriam olhar alto o suficiente para vê-la. 

Havia sinais de que outras pessoas haviam acampado lá no passado, então talvez não tenha sido uma escolha tão ruim. Carmina limpou um pequeno espaço de lixo e pedras, e pegou o cobertor térmico de seu kit de emergência. Não era confortável. Era enrugado e brilhante demais para ser discreto e não parecia quente. Ela sabia que a ajudaria a preservar o calor do corpo, mas teria de encontrar um bom cobertor no dia seguinte. Ia ser uma noite agitada. 

Ela colocou a mochila sob a cabeça e se enrolou de lado, esfregando o estômago e esperando que as dores não durassem muito tempo. Quando a escuridão começou a surgir, ela abriu a mochila e puxou Cynthia. A boneca de pano era velha e um pouco desgastada, mas ela era o único item de conforto de Carmina. Ela tinha cuidado de não deixar ninguém na escola ver Cynthia em sua mochila, mas ela carregava a boneca em todos os lugares que ia. Ela sabia que já era velha suficiente para estar carregando sua boneca com ela, mas sentia que precisava fazer isso. Era como os kits de emergência do pai dela. Ela nunca soube o que ia acontecer. Tinha de estar preparada. E ela tinha razão, porque agora precisava de Cynthia mais do que nunca.

Segurando a boneca de pano no braço, Carmina fechou os olhos e tentou dormir.

Deixando os outros agentes para vasculhar os arredores da Mansão Kavalcanti e o bairro próximo, Nilo verificou os detalhes da escola e se dirigiu até lá.

A escola particular de Carmina era convenientemente próxima. Embora ela normalmente pegasse um ônibus de ida e volta, a escola era perto o suficiente para ir caminhando, se você não se importasse com um pouco de esforço. Com o estômago apertado e ligeiramente enjoado, Nilo caminhou pelos corredores vazios e ecoantes até a diretoria da escola e mostrou seu distintivo.

“Agente Nilo Corveira. Estou aqui para falar com a diretora Nogueira.”

Os olhos da recepcionista eram grandes. Ela concordou com a cabeça. “Irei chamá-la para você imediatamente!”

Nilo olhou para a placa de identificação da diretora perto da porta, se lembrando das coisas que aprendeu quando estava na escola. O diretor é gente boa. Ele se perguntou se havia algum aluno que já tivesse considerado o diretor da escola como gente boa. Nilo certamente não tinha, e ele tinha sido um bom aluno. Não era um encrenqueiro. Mas ainda assim problemático.

“Agente Corveira. Entre”

A diretora era bonita, um pouco mais baixa que Nilo, talvez parte hispânica ou indiana, com um bronzeado natural que a fazia brilhar. Ela estava vestida com um blazer conservador e uma saia, mas acabou parecendo na moda nela. Como se fosse uma modelo. Ela o levou para o seu escritório e fez sinal para a cadeira.

“Me chamo Augusta Nogueira. Sente-se, por favor.”

“Obrigado.” Nilo se sentou e flexionou os pés, tentando soltar os músculos e tendões rígidos. Ele esfregou os joelhos e olhou para a diretora Nogueira.

“Então, diga-me o que você sabe sobre Carmina”, mencionou Nilo. “Quando ela saiu, para onde ela poderia ter ido, com quem ela poderia estar se encontrando?”

“Ela saiu pouco depois do almoço. Ela disse que não estava se sentindo muito bem e precisava ir para casa.”

“E um aluno não precisa de permissão ou supervisão, eles podem simplesmente ir embora?”

“Bem… sim… aqui não é uma prisão, Sr. Corveira. Os alunos vêm e vão. Às vezes têm compromissos, ou um período livre, ou… não se sentem bem.”

“Mas ela disse a alguém que não estava se sentindo bem e precisaria ir para casa?”

“Sim. A Carmina é boa em nos informar se vai para casa. Algumas crianças simplesmente saem, mas ela verifica com a enfermeira ou o escritório antes de sair.”

Nilo anotou isso em seu bloco de notas e olhou para a diretora. Ele não disse nada no início. O silêncio era muitas vezes mais importante do que as perguntas para obter informações das pessoas. A diretora parecia desconfortável. Culpada. 

Ela suspirou profundamente. “Não gosto de falar mal da Carmina. Ela é uma menina adorável…”

Nilo assentiu. “Sim…?”

“Ela costuma ir para casa com… problemas de estômago…, mas nós realmente não poderíamos contrariá-la, sugerir que ela poderia estar fingindo um pouco… seus pais disseram que ela tinha alguns problemas médicos e se ela dissesse que não estava se sentindo bem, ela deveria ter permissão para ir para casa.”

Nilo acenou com a cabeça e inclinou a cadeira ligeiramente para trás sobre duas pernas. “E você acha que talvez ela estivesse aproveitando um pouco da situação?”

“Eu vi aquela garota se alimentando, Sr. Corveira. Não há nada de errado com o estômago dela. E nunca houve atestados médicos ou mesmo anotações de casa dizendo que ela não estava bem. Eu acho que…”, a diretora Nogueira bateu com a caneta na mesa à sua frente. “Eu acho que ela pode ter sido um pouco mimada. Filha única, pais ricos, eles imaginam o pior sempre que ela come demais ou quando é picada por um inseto…”, ela encolheu os ombros expressivamente. “Como eu disse… não gosto de dizer nada negativo sobre Carmina. Acho que é uma boa menina. Ela nunca nos deu problemas. Eu só acho…bem…”

“Que ela pode ser um pouco mimada”, resumiu Nilo. 

“Sim. Não é uma grande falta de caráter nem nada. Apenas… ela é muito próxima da mãe.”

Nilo assentiu, escrevendo mais algumas palavras em seu bloco de anotações. “Obrigado por me informar sobre isso. Então ela saiu um pouco depois do almoço. Não se sentindo  muito sinto bem.”

“Foi o que ela disse”, inseriu a diretora Nogueira.

“Foi o que ela disse,” Nilo repetiu, franzindo a testa. “E ela recebeu permissão para ir para casa.”

“Claro.”

“Alguém se ofereceu para levá-la?”

“Bem… não. Não fazemos isso. Isso atrairia responsabilidade…”

“Mas deixá-la ir para casa sozinha doente, não há responsabilidade.”

A diretora parecia nunca ter pensado nisso antes. Ela franziu a testa. “Se ela estivesse realmente doente, poderia ter ficado na enfermaria. Ela estava bem o suficiente para voltar para casa, como sempre.”

“Mas você não sabe se pode ter ocorrido algo mais grave desta vez. Ela poderia ter desmaiado a caminho de casa… ter ficado desorientada… ou qualquer coisa, na verdade.”

“Bem… suponho”, Nogueira claramente não gostou dessa ideia. “No entanto, eu te disse, ela foi para casa sozinha porque estava sempre doente. Não era nada de novo. Por que ela desmaiaria?”

“Eu não sei. Mas ela não chegou em casa, né?”

A diretora sentou-se lá, franzindo a testa.

“Você não acha que ela poderia sair com um amigo?”, Nilo perguntou.

“Não,” disse Nogueira categoricamente. Ela balançou a cabeça. “Ela não tá com um amigo.”

Nilo esperou novamente, deixando o silêncio se prolongar. Ele flexionou o pé e pressionou os calcanhares, desejando poder tirar os sapatos e esticar e massagear os pés adequadamente. 

“Carmina é uma garota excêntrica. Ela não compartilha muitos interesses com outros estudantes. Ela guarda para si mesma. Talvez se os pais dela a pusessem em atividades extracurriculares, clubes… ela não tem realmente ninguém com quem ela conviva.” E mais ninguém esteve visivelmente ausente esta tarde.”

“Que você notou.”

“Estamos presentes em todas as aulas. Não vi ninguém que estivesse ausente das últimas aulas com quem Carmina tivesse alguma coisa a ver. Ninguém no seu grupo social.”

“Talvez ela tenha um namorado…?”

“Carmina? Ah, não! Nunca a vi sequer olhar para um garoto, muito menos dar as mãos ou conversar no corredor com algum. Ela ainda não… está tão madura assim.”

“Seus amigos podem contar uma história diferente.”

A diretora deu um pequeno encolher de ombros.

“Há mais alguma coisa que devamos saber?” Nilo perguntou. “O que você acha que aconteceu?”

“Não sei… espero que ela não esteja ferida, raptada ou algo assim. Ela é uma garota tão boa. O pai dela é um homem de condições. Talvez ela apenas… não sei… tenha mudado de ideia e decidido ir ao zoológico ou algo assim.”

“Ao zoológico. Bem, espero que não tenha sido nada grave e que ela apareça em casa a qualquer momento. Mas estou preocupado.”

Nogueira acenou com a cabeça. “Posso perguntar… como você está envolvido…? Não parece o caso de uma criança matar aula por uma tarde… não justifica realmente um boletim de desaparecimento. Ainda.”

Nilo não a esclareceu. A notícia estava fadada a ser divulgada pelos jornais matinais, mas ele não seria o responsável por divulgar os detalhes. Ele particularmente não queria que Carmina ouvisse o que estava acontecendo pela videira e fugisse.

“Obrigado pela sua ajuda, Srta. Nogueira. Vou deixar o meu cartão contigo, caso lhe aconteça alguma coisa, ou se ouvir alguma coisa. E eu vou precisar dos nomes de qualquer um dos colegas de classe de Carmina que você acha que pode ser útil…”

Carmina saiu do outro lado da floresta, onde havia um parque público. Ela observava pessoas correndo e andando de bicicleta, passeando com cães, brincando com seus filhos e fazendo piqueniques. Era um dia quente e ensolarado e parecia que todos estavam fora. 

Carmina não sabia o que fazer. Como é que ela devia viver agora? Ela se sentia sem esperança e desamparada. Sua mãe normalmente colocaria o jantar na mesa agora, fazendo perguntas a Carmina sobre como foi a escola hoje. Falando sobre seus últimos desafios em suas pinturas, quais projetos ela estava pensando em fazer. Júlio sentava-se e ouvia. Talvez pegasse seu caderno de anotações para anotar um lembrete para si mesmo. Ela lhe perguntou uma vez o que os códigos em seu caderno significavam, mas ele apenas balançou a cabeça, sua boca fina ficando ainda mais fina e apontando para baixo. 

“Às vezes você precisa manter registros, anotar as coisas”, explicou ele. “Mas você nunca deve escrevê-los de uma forma que outra pessoa possa entendê-los.”

Carmina olhou para o seu bloco de notas aberto. Ela tentou lê-lo ao contrário para ver se fazia sentido dessa forma. Mas ainda parecia uma cifra. Nem a mãe dela conseguia ler. Júlio era o único. 

“Eu hoje tive aula de design gráfico”, sussurrou Carmina para si mesma, como se estivesse à mesa, contando para sua mãe sobre o dia, como deveria ser. “O Sr. Barbosa gostou da minha proposta de projeto. Ele disse que eu deveria me concentrar na mudança social. O que vocês acham?”

Ninguém podia ouvi-la sussurrando. Ela não conseguia nem ouvir a si mesma devido ao barulho do parque ao seu redor. Ela não queria que alguém pensasse que ela era uma maluca e tentasse levá-la ao hospício ou pior. Mas foi reconfortante, algo para ligá-la de volta à sua família. Estar longe deles fez com que ela se sentisse invisível. Inexistente. 

O que diria a mãe dela? A mudança social não era algo que estava no topo da sua lista de afazeres. No que diz respeito ao Sr. Barbosa, a mudança social era a vocação mais elevada e nobre. A razão pela qual você faz alguma coisa. Mas para Esther, a vocação mais elevada e nobre era a arte. Arte por si só. Você não desenha, pinta ou projeta para influenciar o rumo da vida de alguém, suas decisões. Você pinta para lhes dar beleza, equilíbrio ou cor. Para Esther, a arte verdadeira sempre foi arte, não um veículo para mudança social ou influência. 

Havia um grande grupo no parque celebrando. Talvez uma festa de aniversário. Havia muitas crianças e alguns cães. Adultos fritando hambúrgueres e cachorros-quentes em hibachis, havia melancia cortada e meia dúzia de diferentes tipos de sobremesas. 

Carmina não se sentia bem na hora do almoço, mas o cheiro salgado dos cachorros-quentes que cozinhavam fazia seu estômago roncar. Ela tinha comida suficiente para pelo menos duas refeições. Ela podia comer sua merenda escolar no jantar e ela tinha barras de granola e outros alimentos em seu kit de emergência. Depois disso, ela teria que começar a comprar ou procurar comida. Ou então, ela poderia tentar racionar ainda mais a comida que já tinha. Carmina passou por uma das mesas de piquenique à beira da festa. Uma criança tinha deixado um cachorro-quente comido pela metade para trás enquanto ele ia brincar com os cães ou frisbees, ou talvez brincar nos balanços. Carmina deu uma rápida olhada ao seu redor e pegou o prato de papel. Ela se afastou, virou as costas para o grupo, e comeu o cachorro-quente em três mordidas a caminho da lixeira, onde ela jogou o prato fora. Ela vagou pelo parque, com o objetivo de caminhar pelas mesas do outro lado, e talvez pegar uma fatia de melancia e um brownie de sobremesa. 

“Ei!”

Carmina olhou rapidamente para uma mulher de cabelos escuros que gritou. Ela deu um passo para trás, se preparando para correr. 

“Você quer um pouco?” a mulher questionou, com um sorriso e sobrancelhas levantadas. “Há bastante aqui, se você tiver com fome.”

Carmina olhou para a fatia e depois para a mulher, desconfiada. “Eu não deveria…”

“Por que não? Tá aqui. Metade disso vai acabar no lixo. Se estiver com fome, pegue um pouco.”

“Vou jantar em casa”, disse Carmina. “Minha mãe não gostaria que eu perdesse meu apetite.”

“Oh. Bem, você que sabe. A maioria dos adolescentes que eu conheço poderia comer uma refeição completa e ainda assim ir pra casa e comer outra.

Ela desviou o olhar de Carmina para colocar alguns pedaços em um prato para uma criança choramingando. Carmina a observou, perguntando a si mesma se era seguro. Ela deveria pegar comida enquanto tivesse oportunidade, desde que não a denunciassem ou chamassem a polícia. Ela não parecia uma desabrigada ou algo do tipo. Apenas uma garota passeando pelo parque. A mulher não tinha como saber que Carmina havia perdido sua família e sua casa. Ela estava apenas sendo simpática. 

“Sirva-se”, disse a mulher, dando-lhe mais um sorriso e levantando a sobrancelha em convite.

A Carmina decidiu que era melhor arriscar enquanto podia. Era provavelmente a última vez que a mulher ia oferecer. “Hum, ok. Se você realmente não se importa.”

“Não, de modo algum. Nós temos bastante. Você sabe como é nessas reuniões familiares. Todo mundo traz alguma coisa e ninguém quer levar tudo isso de volta pra casa e colocar na geladeira. Eles têm que dirigir por um longo caminho pra chegar em casa. Então tudo acaba sendo desperdiçado.”

Carmina pegou um prato e começou preenchê-lo. “Bem, isso é muito gentil da sua parte”, disse ela. 

Não que ela soubesse alguma coisa sobre reuniões familiares. Sua família era composta por três pessoas. Ela tinha encontrado os avós de sua mãe uma ou duas vezes, mas eles eram pessoas distantes e desinteressadas, não como os avós que você via na TV, se você assistisse a esse tipo de programa. Os pais do pai dela já haviam falecido. Ela não se lembrava de tê-los conhecido algum dia. A ideia de todas essas pessoas pertencerem a apenas uma família era incompreensível.

“Obrigada”, disse ela à mulher.

“Obrigada a você por nos ajudar a nos livrar de algumas dessas coisas!”

Carmina caminhou rapidamente para o outro lado do parque, sentou-se em um banco desocupado e retirou as guloseimas, fora da vista da mulher e de sua família. Com o estômago cheio e satisfeito, ela jogou fora o segundo prato e seguiu em frente. Seu peito ardia um pouco, deixando-a saber que ela encheu o estômago demais. Esther teria repreendido ela por ter comido tão rápido e em grande quantidade. Mas ela tinha que comer enquanto podia. Isso era o que Júlio teria dito.

Nilo voltou para sua mesa para largar a papelada e tirar os sapatos, que estavam o deixando louco. Agnese lhe deu um pequeno aceno e um sorriso, e ele foi até a mesa dela.

“Você tem um minutinho?”

“Pra você? Sempre”, ela sorriu hesitantemente, puxando seus longos cabelos castanhos para trás da cabeça, formando um rabo de cavalo por um momento e depois soltando-os para que caíssem pelas costas. Alguns fios soltos ainda caíam ao redor do rosto dela, se recusando a ficarem contidos. 

“Eu tenho algumas crianças da escola com quem preciso falar para que me respondam algumas perguntas. Não tenho tempo para ir às casas deles, por isso preciso que os pais os tragam aqui. Tudo bem?”

Agnese franziu os lábios e não parecia muito animada com isso. Ela preferia rastrear as pessoas pelo computador, estalqueá-las on-line e dar a ele todos os detalhes para persegui-las pessoalmente. Falar com elas ao telefone estava bem no final da lista de trabalhos que ela preferia fazer. 

“Desculpe”, disse Nilo, balançando a cabeça. “Eu realmente preciso que você fale com elas. Traga-os pra mim, tudo bem?”

“Claro, chefe”, ela concordou.

Mas seu sorriso desapareceu assim que ela olhou para os nomes na anotação e se preparou para fazer o que ele havia pedido. Nilo deu outro pequeno encolher de ombros e se dirigiu pelo corredor para os elevadores. Os Kavalcanti estavam no quarto andar, e estava na hora dele começar a trabalhar e descobrir o que podia sobre eles. 

Esther Kavalcanti provavelmente era a sua melhor opção. Ele suspeitava, a partir de sua investigação, que Júlio seria um osso duro de roer. Nilo ficou de pé e olhou para Esther através do espelho de observação por alguns minutos antes de entrar. Ele sempre pensou em ‘Esther’ como um nome para uma mulher de cabelos escuros. Mechas de cabelo preto enroladas ao redor de seu rosto. Mas Esther Kavalcanti era uma bela loira. Cabelos longos e dourados corriam ao redor de seu rosto, caindo no lugar toda vez que ela se movia como se tivesse sido projetada por um diretor de Hollywood. Era mais escuro em direção às raízes, mas parecia ser natural, não descolorado. Ela tinha um rosto bonito e bem caracterizado. Mas naquele momento ela estava muito aborrecida. Eles tentaram vários interrogadores diferentes, mas ninguém parecia ser capaz de se conectar com ela para obter qualquer informação dela. Ela apenas continuava reclamando e colocando o rosto nas mãos e implorando que a deixassem ir para casa.

Nilo fez uma cara carrancuda e entrou para vê-la. 

Esther olhou para ele quando ele entrou, e talvez estivesse esperançosa de ver um rosto com o qual ela ainda não havia lidado antes. “Você que está no comando?” ela questionou. “Você pode dizer a eles pra me deixarem ir pra casa?”

“Temo que você não vá pra casa, Esther”, disse Nilo o mais gentilmente possível e se sentou em frente a ela. “Mas agora, eu preciso que você se concentre em sua filha.”

“Carmina?” Esther parecia confusa. “Você também a prendeu? Onde está ela?”

“Não a prendemos.”

“Ela tá em casa? Ela deve estar assustada por estar sozinha. Carmina nunca gosta de ficar sozinha.”

“Carmina não voltou da escola hoje.”

Esther puxou as mãos para trás do rosto e bateu os dedos inquietamente na mesa. 

“Eu perdi o sol da tarde hoje”, disse ela. “Não consigo completar o Van Gough sem o sol da tarde.”

Nilo a encarou. Ele esperou que ela olhasse para ele novamente. Ela olhou rapidamente para o rosto dele, e os olhos dela se desviaram.

“Carmina não voltou da escola hoje,” repetiu Nilo. “Ela não chegou em casa. Ela tinha planejado ir à casa de um amigo ou algo do tipo? Sabe pra onde ela pretendia ir?”

“Não”, Esther balançou a cabeça. “Carmina sempre volta pra casa. Ela não vai à casa dos amigos. Ela chega em casa, e depois de terminar o meu projeto da tarde, faço um jantar e conversamos.” Ela tamborilou os dedos novamente e balançou a cabeça. “Mas eu não peguei a luz da tarde hoje.”

Nilo pensou a princípio que o estúdio do terceiro andar era pretensioso; todas aquelas janelas enormes, mirando em todas as direções. Parecia que era apenas um espetáculo. Mas cada janela captava a melhor luz em um horário diferente do dia, e em cada uma delas havia um projeto diferente, ou vários projetos, e Esther se alternava entre eles ao longo do dia.

“Sra. Kavalcanti.”

Ela esfregou as têmporas, sem olhar para ele.

“Sra. Kavalcanti, você pode se concentrar em mim aqui? Isto é importante.”

Ela olhou para o rosto dele, com linhas de preocupação surgindo acima de seu nariz.

“Carmina está desaparecida. Você consegue pensar onde ela poderia ir, se não fosse pra casa?”

“Não. Ela sempre vai pra casa.” 

“Por favor, pense um pouco.”

Ela não disse nada. Nilo esperou. “Você deveria perguntar a Júlio”, disse Esther decididamente.

“Você não tem ideia de onde sua filha poderia ter ido?”

“Ela vai voltar pra casa”, insistiu Esther.

“Ela não voltou pra casa. Ela está desaparecida. Precisamos encontrá-la.”

“Você poderia me dar um papel?”, Esther sugeriu. “E alguns lápis? Preciso fazer algo com as mãos.”

“Veremos”, disse Nilo.

Ela fez uma careta e cobriu o rosto com as mãos novamente. “Não consigo me concentrar em nada.”

“Se eu lhe der algo pra desenhar, você pode me dizer para onde Carmina poderia ter ido?”

Ela começou a balançar um pouco para frente e para trás, gemendo.

“Sra. Kavalcanti.”

Ela não voltou a olhar para ele. Nilo se afastou da mesa. Ele saiu da sala de interrogatório e certificou-se de que a porta se fechasse com segurança atrás dele. Ele desceu o corredor para a sala de interrogatório de Júlio Kavalcanti. Pelas respostas rosnadas de Júlio, Matilde não estava indo muito bem em estabelecer um relacionamento. Ele abriu a porta e ergueu as sobrancelhas para ela. Ela se levantou e saiu, fechando a porta atrás dela e se encostando nela. 

“Prazer em vê-lo, agente Corveira.” Ela esfregou a testa em um gesto de fadiga. “Como as coisas estão progredindo?”

“Não muito bem, no que diz respeito a trazer Carmina de volta. Gostaria de fazer algumas perguntas ao Júlio.”

“Ele não é muito cooperativo.”

“Espero que ele seja mais cooperativo no que diz respeito à segurança da filha.”

Ela assentiu. “Sim. Vá em frente. Gostaria muito de poder dizer, no fim das contas, que a garota está segura.

“Ok. Poderia me fazer um favor enquanto falo com ele?”

“Do que você precisa?”

“A Sra. Kavalcanti precisa de papel e lápis.”

Matilde franziu para ele. “Ela vai assinar uma declaração?”

“Não… ainda estou tentando entender ela melhor…, mas acredito que ela pode nos ajudar mais com um lápis na mão.”

“Ok. Desde que ela prometa não os usar como armas.”

Nilo entrou na sala de interrogatório. Júlio olhou para ele com olhar de desconfiança. Suas sobrancelhas pretas e espessas se aproximaram. “Você estava na minha casa esta manhã”, ele acusou.

Nilo assentiu e se sentou. “Me chamo agente Nilo Corveira.”

Júlio cruzou os braços sobre o peito. Um sinal de que ele não cooperaria.

“Sr. Kavalcanti, não estou aqui para discutir as acusações com você neste momento. Temos um problema mais urgente.”

“Eu não me importo com o seu problema.”

“Acho que você se importará. Estamos tentando encontrar a sua filha.”

“Você deixe minha filha fora disso!”

Não foi a reação que Nilo esperava. Ele pestanejou. “Acredito que você não tenha entendido. “Carmina não voltou da escola hoje.” Não sabemos onde ela está. A menos que você saiba pra onde ela foi, ela poderia estar em perigo.”

Você não entende”, respondeu Júlio. “Eu não quero você perto da minha filha.”

Nilo estudou os olhos de Júlio, tentando entendê-lo. Ele nunca tinha visto nenhum pai responder como o Sr. e a Sra. Kavalcanti reagiram ao desaparecimento de Carmina. “Isso significa que você sabe onde Carmina tá? Sabe se ela está segura?”

Júlio balançou a cabeça. “Não, eu não sei onde ela tá. Mas ela é uma garota esperta. Ela está bem.”

“Bem, vamos mantê-la assim então. Para onde você acha que ela iria? Você acha que ela está fugindo com medo ou que está em algum lugar com um amigo?”

O homem apenas olhou para ele e não disse nada. 

“Sua esposa diz que não acha que Carmina estaria com um amigo. A escola parece pensar o mesmo.”

“Ela não sai com amigos.”

“Então sua filha está fugindo, sozinha, e você não se importa? Nós precisamos encontrá-la. Mantê-la segura.”

Júlio cerrou a mandíbula. “Acho que terminamos aqui. Você pode ficar longe da minha filha. Deixa-a em paz.”

Nilo balançou a cabeça em descrença. Mas, sentindo que Júlio não tinha intenção de continuar essa linha de discussão, ele abandonou o tópico e mudou de direção.

“Fale-me sobre sua mulher”, sugeriu. “Ela parece… um pouco ansiosa. Ela está tomando algum tipo de medicação…?”

Júlio considerou essa nova questão. Ele tinha grandes olheiras sob os olhos, o que dava a impressão de que ele não tinha dormido por um bom tempo. Ele parecia estar cronicamente com falta de sono e nervoso. “Esther é uma artista”, disse ele. “Os artistas são frequentemente… excêntricos. Inconvencional.”

Nilo assentiu estimulantemente.

“Ela é uma artista”, repetiu Júlio, com um encolher de ombros pesado.

“Ela está tomando algum medicamento? Sob os cuidados de um médico?”

A questão só precisava de um simples sim ou não, mas Júlio, aparentemente, precisava pensar sobre isso. Eventualmente, ele balançou a cabeça. “Não, ela não está.”

Nilo estudou Júlio, avaliando-o, tentando entrar em sua mente. Ele sabia muito sobre o homem como resultado de sua investigação que durou meses, mas ainda tinha dificuldade em entender o que motivava Júlio Kavalcanti. Pelas indicações, ele era um empresário brilhante, mas no que diz respeito a entender sua personalidade, ele era quase tão difícil de compreender quanto sua esposa reclusa. 

Júlio olhou para ele com olhos críticos. Talvez ele também estivesse avaliando Nilo; esse inimigo que permaneceu invisível nos últimos meses, descobrindo seus segredos, estalqueando-o das sombras. 

“Tenho a sensação de que você é um pouco inconvencional”, disse Nilo.

Júlio lhe deu um sorriso sombrio que lembrou Nilo de um tubarão.

Quando Nilo saiu da sala de interrogatório, Matilde o encontrou no corredor. Ela balançou a cabeça, fazendo suas trancinhas saltarem. “Inconvencional é a palavra certa,” concordou ela. “Ambos.”

Nilo teve que concordar. “Eles certamente estão desafiando todas as minhas capacidades.”

“Você ouviu o que sua equipe descobriu na mansão desde que você saiu?”

Nilo levantou as sobrancelhas. “Eles encontraram a garota?”

“Não. E temos outra equipe cuidando dessa busca, então seus rapazes estão de volta para limpar as evidências.”

“Ok. Então, o que encontraram?”

“Eles terminaram de carregar os arquivos. Então eles começaram uma busca mais intensiva do resto da casa, verificando se há cofres ou outros esconderijos.”

“Encontraram algum?”

Ela ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça. “A casa inteira tá cheia de esconderijos! Eles encontraram cofres, algumas quartos do pânico, suprimentos de alimentos armazenados e equipamentos de sobrevivência… esse cara é um verdadeiro fanático. Teorias da conspiração, o pacote completo.”

Nilo deixou isso ser absorvido por um momento. Gradualmente começou a fazer sentido. Os arquivos codificados. A falta de informação pública sobre Júlio. A falta de estrutura social em torno de Esther e Carmina. Júlio pensou que havia uma conspiração contra ele. Ele estava protegendo todos eles.

“Eu vou ter que pensar sobre isso”, disse ele a Matilde. “Isso está ficando complicado.”

“Bem-vindo ao meu mundo.”

“E nenhum progresso na busca pela garota?”

“Ainda não. Vamos ter que cancelar por hoje à noite. Você deixa passar coisas no escuro.”

“Aham. Só espero que… tenham um plano de fuga. Que eles tenham organizado pra que ela fosse pra casa de alguém se algo acontecesse com eles. Mesmo que possa ser mais difícil localizá-la se ela tivesse alguém em quem pudesse contar pra obter ajuda… só espero que ela esteja segura, e não sozinha lá fora.”

“A mãe não ajudou em nada?”

“Vou tentar novamente. Ela obteve os lápis?”

Matilde acenou com a cabeça. “Ela tá fazendo arte.”

Nilo deu um passo em direção à outra sala de interrogatório e Matilde colocou uma mão restritiva em seu braço. Ele parou e olhou para ela. “Você tem certeza de que Carmina fugiu? Não acha que houve um acidente, ou um sequestro…?”

“Olhando para a linha do tempo… se ela saiu da escola quando dizem que saiu, então ela provavelmente entrou direto na operação que estava acontecendo na casa. E se ela acredita nas teorias da conspiração de seu pai, nem que seja um pouquinho, ela não vai esperar e fazer perguntas.”

“Não, você tem razão. E para um sequestro acontecer justamente com ela a caminho de casa, é uma coincidência grande demais. É muito mais provável que ela tenha fugido.”

Nilo concordou. 

“Ok. Boa sorte com a mãe.”

Nilo respirou fundo antes de voltar para a sala de interrogatório de Esther. Ele pôde ver pela pequena janela que ela estava inclinada sobre os papéis que lhe haviam sido fornecidos, profundamente concentrada. Ele entrou e olhou para o desenho em que ela estava trabalhando. 

No curto espaço de tempo desde que lhe tinham sido dados materiais de desenho, ela tinha esboçado uma imagem de Carmina. Talvez um pouco mais jovem do que a da vida real. Com orelhas de fada e uma tiara de joias. Nilo ficou olhando por cima do ombro de Esther. Na foto, Carmina estava em uma floresta, envolta nas folhas exuberantes das árvores e flores. Havia outros animais escondidos na folhagem. Um veado. Um esquilo. E no canto, um lobo magro e escuro. 

“Você sabia que não está usando nenhum sapatos?” Esther questionou, sem olhar para cima.

“Uh, não. Não estou. Como você sabia? Você nem sequer verificou.”

“Todo mundo faz barulho quando anda.”

“Bem, espero não ter te assustado, entrando tão silenciosamente.”

Ela olhou para ele brevemente. “Não me assustou.”

O rosto dela estava muito mais relaxado agora. A arte era definitivamente sua droga de escolha. Nilo se sentou à mesa, olhando para a foto. “É a Carmina?”

“Sim.”

“Carmina gosta da floresta?”

“Ela é uma elfa da floresta. É claro que ela gosta.”

“Mas me refiro na vida real. Quando ela é uma menina, não uma elfa.”

“Bem…”, Esther parou de falar. “Ela gosta que eu a desenhe na floresta.”

“Então ela realmente não gosta de estar na floresta na vida real?”

“Sim…, mas ela tem escola e seus projetos. Ela não passa muito tempo fora.”

“Sim. É assim que as crianças são hoje em dia, não é? Muito tempo na frente da tela. Ela tem um lugar favorito para ir na floresta quando sai? Uma casa na árvore na propriedade ou um lago favorito no parque, ou algo assim?”

“Eu não sei. Não saio muito.”

Nilo a observou escurecer o sombreamento do lobo.

“Você me disse que ela tá desaparecida?” Esther questionou, olhando para cima de seu desenho novamente, suas sobrancelhas se apertando uma na direção da outra.

“Sim. E tá escuro lá fora. Precisamos encontrá-la para mantê-la segura.”

Ela voltou a sombrear o lobo.

“O lobo é perigoso?” Nilo perguntou.

“Oh, sim.”

“Não sabemos que tipo de perigos Carmina pode estar enfrentando de verdade. Nós precisamos saber onde encontrá-la.”

“Júlio não sabia?”. Estava finalmente começando a soar como uma conversa real.

“Não. Ele disse que não. Mas ele não a conhece como você, conhece?”

Esther parou por um momento, depois começou a retocar as joias na tiara da elfa Carmina. “Eu sempre quis uma garotinha. Carmina foi um sonho tornado realidade.”

“Aposto que você faz muitas coisas com ela.”

“Ela está fazendo design na escola.”

“Vocês desenham juntas?”

“Claro que sim. Eu a ensinei a colorir com giz de cera desde muito pequena.”

“O que ela gosta de desenhar?”

“Ela é boa em feições. Esboçar uma imagem. Ela não desenha muita fantasia. Ela faz coisas mais… comerciais.”

“Você também sabe esboçar uma boa imagem”, disse Nilo, olhando para a elfa. 

Esther inclinou a cabeça, olhando para o desenho criticamente. “É tecnicamente perfeito. Mas não tem tanto… apelo emocional.”

“Você disse que Carmina faz mais trabalhos comerciais. Isso significa que está vendendo o trabalho dela?”

Ele observou Esther adicionar meticulosamente folhas e grama ao desenho.

“Anúncios, trabalho freelancer, murais comunitários. Muito… comerciais.”

“Eu imagino que você não aprova isso. Mas você não vende seu trabalho? As suas cópias não trazem um bom dinheiro?”

“Júlio que cuida disso”, disse Esther, acenando com a mão livre. “Mas elas não são apenas para vender algo. Elas são para pessoas que gostam de grandes obras de arte, que as querem em sua própria casa.”

“Ah, entendo. Anúncios vendem um produto que não é a arte. A arte é apenas o meio.”

Ela levantou a cabeça e olhou para ele, levantando uma sobrancelha. “Sim”, ela concordou.

Nilo observou seu desenho, ponderando sobre o que sabia sobre a família até agora. “Você tem algum amigo ou parente que Carmina possa pedir ajuda?”

“Eu tenho pais, mas ela não iria lá. Ela não iria até ninguém em busca de ajuda. Júlio diz…” Ela parou de falar. Ela sombreou a área ao redor do lobo, fazendo parecer que estava exalando escuridão.

“O que Júlio diz?” Nilo perguntou finalmente, quebrando o silêncio.

Ela balançou a cabeça.

“O que ele diria para a Carmina fazer, caso ele estivesse com ela agora? Ele não diria para ela ir para a casa de alguém?”

“Não.”

“O que ele diria a ela?”

“Você deveria perguntar a ele.”

“Ele diria pra ela ir a um determinado lugar? Elaboraria um plano para encontrá-la em um lugar seguro?”

“Não. Acho que não.”

“Como ele a manteria segura, então? Ele ama a Carmina, não é? Como é que ele a manteria a salvo?”

Ela não respondeu e não olhou para ele. Nilo tocou o lobo em apelo. “Você pode ver o perigo em que ela está. Como vamos ajudá-la?”

“Não toque no papel!” Esther gritou, afastando-o dele. “Os óleos dos seus dedos vão arruinar a imagem! Jamais toque nela!”

Seu rosto mudou de uma calma pacífica enquanto ela trabalhava na imagem para raiva. O coração de Nilo acelerou, apesar de ela não ser uma ameaça física para ele. Sua reação foi tão inesperada que ele ficou espantado, envergonhado com o que havia feito.

“Me desculpe. Sinto muito, não era minha intenção prejudicar o seu desenho. Nunca imaginei.”

“Você nunca deve tocar. Nunca.”

“Ok. Eu entendo.”

Ela o encarou mais uma vez e depois voltou a trabalhar no desenho, posicionando o papel e ela mesma de modo que seu corpo ficasse entre Nilo e o desenho. Nilo observou-a, esperando enquanto seu corpo começava a relaxar novamente, e ela ficava distraída em seu trabalho. 

“Onde você acha que Carmina vai dormir esta noite?”

Demorou um tempo para que ela respondesse, mas Nilo estava começando a sentir seu ritmo e esperou pacientemente por sua resposta.

“Você deveria verificar a cama dela”, disse Esther inocentemente. “Ou talvez ela esteja em uma das salas seguras.”

Nilo suspirou. Ele recostou-se na cadeira e fechou os olhos, massageando a ponte do nariz.

Carmina estava caminhando a bastante tempo. Ela sabia que precisava encontrar algum lugar para se acomodar para a noite. Esta noite seria a sua primeira noite nas ruas. Mas certamente não a última. Ela precisaria encontrar um lugar seguro.

“Há segurança nos números”, Júlio disse a ela muitas vezes no passado. “Se você não quer ser vista, não fique sozinha.”

E especialmente uma jovem. As pessoas iriam notá-la, iriam mirá-la se ela estivesse sozinha. Mas ela não tinha certeza onde os desabrigados se reuniam. Ela ouviu dizer que eles dormiam debaixo de pontes. Mas que pontes? Onde? Ela particularmente permaneceu na área verde durante a tarde e noite, e viu algumas pessoas em situação de rua, mas estavam todas sozinhas, não estavam juntas para se proteger. Carmina suspirou e se dirigiu para o rio. Havia muitos caminhos ao longo do rio, e ela mantinha os olhos bem abertos, procurando por pontes ou outras áreas que pudessem parecer promissoras. Pareciam ser poucas e distantes entre si. 

Eventualmente, ela parou. Ela encontrou uma ponte que parecia promissora, com muito espaço embaixo, bem protegida no caso de começar a chover. Mas não havia mais ninguém lá. 

Seus pés doíam ao caminhar. Seu estômago também doía. Carmina não estava apenas cansada após o longo dia, ela estava exausta. Ela não aguentaria ir muito mais longe, e provavelmente seria mais alguns quilômetros até a próxima ponte, que provavelmente estaria tão deserta quanto esta. Ela não conseguiria chegar muito longe, especialmente agora que seu estômago estava se contraindo de dor. Ela precisava se deitar. Ela precisaria tomar uma decisão sobre onde se abrigar para a noite. 

Carmina largou a mochila e examinou o local. Era espaçoso. Silencioso. Seco. A trilha para bicicletas e corrida passava por baixo da ponte, então haveria movimento por ali, mesmo que ninguém mais estivesse dormindo naquele lugar. Ela decidiu que deveria dormir o mais alto possível. Havia uma leve inclinação que ia até a parte inferior da ponte, e se ela dormisse lá em cima, acima das cabeças das pessoas que usavam a trilha, não seria tão perceptível. A maioria das pessoas provavelmente nunca iriam olhar alto o suficiente para vê-la. 

Havia sinais de que outras pessoas haviam acampado lá no passado, então talvez não tenha sido uma escolha tão ruim. Carmina limpou um pequeno espaço de lixo e pedras, e pegou o cobertor térmico de seu kit de emergência. Não era confortável. Era enrugado e brilhante demais para ser discreto e não parecia quente. Ela sabia que a ajudaria a preservar o calor do corpo, mas teria de encontrar um bom cobertor no dia seguinte. Ia ser uma noite agitada. 

Ela colocou a mochila sob a cabeça e se enrolou de lado, esfregando o estômago e esperando que as dores não durassem muito tempo. Quando a escuridão começou a surgir, ela abriu a mochila e puxou Cynthia. A boneca de pano era velha e um pouco desgastada, mas ela era o único item de conforto de Carmina. Ela tinha cuidado de não deixar ninguém na escola ver Cynthia em sua mochila, mas ela carregava a boneca em todos os lugares que ia. Ela sabia que já era velha suficiente para estar carregando sua boneca com ela, mas sentia que precisava fazer isso. Era como os kits de emergência do pai dela. Ela nunca soube o que ia acontecer. Tinha de estar preparada. E ela tinha razão, porque agora precisava de Cynthia mais do que nunca.

Segurando a boneca de pano no braço, Carmina fechou os olhos e tentou dormir.


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O Segredo de Cynthia

By P.D. Workman

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